Vampirismo: mito, arte e ciência
Há um motivo para produção de um texto sobre “Vampirismo: mito, arte e ciência”. Várias criaturas sobrenaturais merecem um texto como este. Escolhi o mito do vampiro por ser dos mais conhecidos e porque o texto anterior foi sobre morcegos.
Os mitos, as artes e as ciências são criações humanas fundamentais para entendermos o mundo e a nós mesmos. Podemos considerá-las estágios de evolução do pensamento humano, mas que isso fique longe de ser a regra. As três são essenciais e concomitantes.
Há fatos, sensações e sabedorias que só são mais bem entendidos por meio da arte (e dos mitos). Por outro lado, dentre os muitos aspectos da criação artística está a tentativa de entender, de buscar a verdade. Escritores, pintores, escultores e muitos outros artistas buscam a verdade, ao mesmo tempo em que a constroem em suas obras.
Somos acostumados a considerar verdadeiro ou confiável apenas o que é obtido por meio da ciência, mas a realidade é um tanto imprevisível e muitas vezes a verdade nos escapa entre os dedos. Acredito que precisamos dessas três maneiras de interação com a realidade. Vamos ver como elas se envolvem quando o assunto é o vampirismo.
Mito
Os mitos têm desempenhado papel essencial na formação da cultura e da identidade de diferentes civilizações. Eles permeiam nossas vidas, influenciam nossas crenças e moldam nossa compreensão do mundo.
Trata-se de uma narrativa tradicional que aborda questões fundamentais sobre a origem do universo, o propósito da vida, os mistérios da natureza, a moralidade e as relações humanas.
Os mitos frequentemente apresentam personagens heroicos, deuses, semideuses ou criaturas sobrenaturais que personificam virtudes, falhas humanas, forças naturais e até mesmo o mal.
O mito (pensamento mítico) é um dos primeiros modos que o ser humano tem de conhecer. Por dezenas de milhares de anos, o pensamento mítico, em especial em relação aos fenômenos naturais, foi o modo de nos relacionarmos com o nosso próprio destino. Um destino que por muitos milênios foi, o mais das vezes, imprevisível e cruel. De alguma forma o ser humano tinha que se relacionar com o que desconhecia e, nesse contexto, o pensamento mítico foi natural.
O mito do vampirismo
Há mitos sobre sugadores de sangue em diferentes culturas e épocas. As primeiras referências aos vampiros podem ser encontradas nas civilizações antigas da Mesopotâmia, da Grécia e de Roma.
Na Mesopotâmia, existiam demônios e espíritos que se alimentavam do sangue e da energia vital dos humanos, como os Lilitu, os Ekimmu e os Utukku. Esses seres eram considerados responsáveis por doenças, pragas e mortes.
Na Grécia, havia as Empusas, filhas da deusa Hécate, que se disfarçavam de mulheres sedutoras para atrair os homens e sugar seu sangue.
Em Roma, havia as Lamias, mulheres meio-serpentes que devoravam crianças e jovens.
Essas lendas antigas foram incorporadas ao folclore medieval, especialmente nos países do leste europeu, como a Romênia, a Hungria e a Sérvia. Nesses países, surgiram as histórias de mortos-vivos que saíam de seus túmulos para atacar os vivos, sugando seu sangue ou sua força vital. Esses seres eram chamados de vampiros, strigoi, vrykolakas ou nosferatu.
Artes: os registros dos mitos
Como sabemos de tudo isso? As primeiras transmissões dos mitos eram feitas de forma oral. Embora essa transmissão seja uma expressão cultural, não podemos, ainda, chamá-la de “arte” da forma como esta é entendida hoje. O registro da expressão cultural se fez ponto essencial para que do mito surgissem as manifestações artísticas – o desenho, a pintura e a escultura; a poesia (depois, as narrativas em geral) e a música, provavelmente também a dança em muitas ocasiões; e o teatro, que parece ter sido o último a aparecer.
Se as primeiras civilizações legaram o mito de criaturas que sugavam sangue, a arte, como frequentemente faz, apropriou-se do mito e o moldou com liberdade.
O folclore de diversos povos apresentou os vampiros como humanos, lobos, morcegos e mesmo como uma névoa. Ficaremos com a figura mais comum nas culturas mais recentes, a de seres sobrenaturais que se alimentam do sangue de organismos vivos, são capazes de se transformar em morcegos e caçam à noite. Têm o poder da imortalidade e a capacidade de manipular a mente de suas presas. Além disso, não são mortos nem vivos, mas mortos-vivos.
Devemos às artes a figura dos vampiros que conhecemos hoje. Ao longo das próximas seções, você notará que a figura da Antiguidade, de um ser sugador de sangue com ou sem atributos femininos, passará ao de uma vampira sedutora e, na transição do século XIX para o XX, ao do vampiro sedutor masculino. As características mais específicas nos foram trazidas, em especial, pela literatura e pela pintura.
E quais são as características que vemos em nossa cultura? Os vampiros são pálidos, frios e sem batimentos cardíacos. Eles têm presas afiadas para perfurar o pescoço das vítimas e sugar seu sangue; são sensíveis à luz solar, ao alho, à água benta e aos crucifixos; podem ser mortos por uma estaca no coração ou por decapitação; e podem transformar outras pessoas em vampiros ao mordê-las ou trocar sangue com elas.
Carmilla e Drácula
O mito dos vampiros ganhou o imaginário mundial no século XIX, com a publicação de obras literárias que retratavam essas criaturas de forma romântica e atraente. Na primeira metade do século, há obras em que essas criaturas aparecem na forma de mulheres sedutoras, ainda que em alguns textos o tema do vampirismo não seja central – “Die Braut von Korinth” de Goethe (ainda no século XVIII – 1797), “The Giaour” de Lord Byron, “Lamia” de John Keats etc.
“Carmilla” é uma novela escrita por Joseph Sheridan Le Fanu e publicada em 1872. Destaca-se como uma das precursoras da literatura de vampiros, tendo sido escrita numa época caracterizada por avanços científicos (eletromagnetismo, evolucionismo, o inconsciente) e fascínio pelo sobrenatural. Como em grande parte da literatura vampiresca, explora temas como desejo, sedução e erotismo.
Le Fanu se inspirou em lendas e mitos relacionados ao vampirismo presentes na Europa Central e Oriental para criar a personagem Carmilla, uma figura sedutora, manipuladora e que se alimenta do sangue e da energia vital de suas vítimas, ao mesmo tempo em que exerce um certo encantamento sobre elas.
“Drácula”, de Bram Stoker, foi publicado em 1897. O livro conta a história do conde Drácula, um vampiro originário da Transilvânia que se muda para Londres em busca de novas vítimas. O personagem foi inspirado na figura histórica de Vlad III (1431-76), o Empalador, um príncipe da Valáquia que ficou conhecido por sua crueldade contra seus inimigos.
A figura de Drácula é apresentada também como a de um vampiro nobre e sedutor, além de maligno e perigoso. Ele possui habilidades sobrenaturais, como a capacidade de se transformar em animais, controlar a mente de suas vítimas e regenerar feridas. Drácula andava sem problemas sob a luz solar, sendo esta mortal para um vampiro pela primeira vez no filme Nosferatu (ver à frente). Além disso, o vampiro de Stoker é morto com o pescoço cortado e uma estaca no coração. O romance se tornou um marco da literatura gótica e estabeleceu muitos dos elementos e convenções associados aos vampiros na cultura popular. A figura de Drácula e a narrativa da obra inauguraram um novo gênero literário: o horror gótico. E o vampiro se tornou um ícone.
O gótico
É muito difícil dissociarmos a influência gótica das manifestações artísticas relativas aos vampiros.
O estilo gótico, que surgiu na arquitetura, na escultura e na pintura ainda na Idade Média, se desenvolveu também na literatura, embora mais tardiamente, no século XVIII e, plenamente, durante o XIX. O estilo gótico na literatura é caracterizado pelo uso de terror, suspense e mistério. Os romances góticos geralmente se passam em cenários sombrios e sinistros, como castelos, igrejas e cemitérios. Os personagens góticos são frequentemente atormentados por forças sobrenaturais, como fantasmas, vampiros e lobisomens. Influenciado pela arquitetura medieval e pela atmosfera misteriosa, o gótico tem a escuridão, a morte e o sobrenatural como elementos essenciais.
Foi esse estilo que reforçou a figura dos vampiros como elegantes e sedutoras. Além disso, o romantismo (em especial o amor “de perdição” e o amor proibido) presente no estilo gótico influenciou as relações entre os vampiros e seus amantes humanos. Esses elementos de paixão e tragédia contribuem para o sucesso das histórias vampirescas.
Artes visuais e literatura
A literatura dos vampiros passou a influenciar outras artes, como o desenho e a pintura. Veja este maravilhoso quadro de Edvard Munch, de 1895, chamado “Vampira”.
Munch produziu várias versões do quadro – você pode procurar na internet, se tiver curiosidade sobre como o processo criativo é muitas vezes avesso a regras e à lógica. Antes ainda, Munch produziu desenhos sobre o tema, como este:
As artes visuais, por sua vez, também tiveram efeito sobre a literatura. Um exemplo muito interessante é o poema “The Vampire”, de Rudyard Kipling, feito para a pintura de Philip Burne-Jones (Londres, 1897). Veja a pintura e o poema, para o que ofereço minha tradução, em seguida.
“The Vampire” por Rudyard Kipling
A fool there was and he made his prayer
(Even as you or I!)
To a rag and a bone and a hank of hair,
(We called her the woman who did not care),
But the fool he called her his lady fair—
(Even as you or I!)
Oh, the years we waste and the tears we waste,
And the work of our head and hand
Belong to the woman who did not know
(And now we know that she never could know)
And did not understand!
A fool there was and his goods he spent,
(Even as you or I!)
Honour and faith and a sure intent
(And it wasn’t the least what the lady meant),
But a fool must follow his natural bent
(Even as you or I!)
Oh, the toil we lost and the spoil we lost
And the excellent things we planned
Belong to the woman who didn’t know why
(And now we know that she never knew why)
And did not understand!
The fool was stripped to his foolish hide,
(Even as you or I!)
Which she might have seen when she threw him aside—
(But it isn’t on record the lady tried)
So some of him lived but the most of him died—
(Even as you or I!)
And it isn’t the shame and it isn’t the blame
That stings like a white-hot brand—
It’s coming to know that she never knew why
(Seeing, at last, she could never know why)
And never could understand!
(Este poema está em domínio público)
Minha tradução, muito livre:
“A Vampira” por Rudyard Kipling
Havia um tolo e sua oração
(Assim como você ou eu!)
A um trapo, um osso e uma mecha de cabelo,
(A chamávamos de mulher indiferente),
Mas o tolo, ele a chamou sua bela dama—
(Assim como você ou eu!)
Oh, desperdiçamos os anos e desperdiçamos as lágrimas,
E o trabalho de nossas cabeça e mão
Pertence à mulher que não sabia
(E agora sabemos que ela nunca poderia saber)
E não entendia!
Havia um tolo e seus bens ele gastou,
(Assim como você ou eu!)
Honra e fé e uma intenção segura
(E não era o mínimo que a senhora queria dizer),
Mas um tolo deve seguir sua inclinação natural
(Assim como você ou eu!)
Oh, perdemos a labuta e perdemos a rapina
E as coisas excelentes que planejamos
Pertencem à mulher que não sabia por que
(E agora sabemos que ela nunca soube por que)
E não entendia!
O tolo teve seu tolo couro arrancado,
(Assim como você ou eu!)
Que ela pode ter visto quando o atirou de lado—
(Mas não está gravado que a senhora tentou)
Então, algo dele viveu, mas sua maior parte morreu—
(Assim como você ou eu!)
Mas não é a vergonha e não é a culpa
Que marca como ferro em brasa—
Saber-se-á que ela nunca soube por que
(Vendo, ao final, ela nunca poderia saber por que)
E nunca poderia entender!
Não é difícil imaginar que Munch, Burne-Jones e Kipling estavam sob influência da figura feminina dos vampiros (desde a Antiguidade até Carmilla) – lembremos que o romance de Bram Stoker seria lançado em 1897.
Cinema
A estreia de um vampiro como personagem de cinema foi em “Nosferatu: Eine Symphonie des Grauens”, um filme mudo alemão lançado em 1922 e dirigido por F. W. Murnau. O filme tem enredo muito parecido com o do romance de Bram Stoker. Nele, o Conde Orlok, um vampiro, traz morte e destruição para a cidade alemã de Brêmen. Nosferatu é um dos filmes de vampiros mais influentes de todos os tempos (e meu preferido).
No filme, o vampiro é retratado com características grotescas, pele pálida, olhos penetrantes e dentes afiados. Veja a imagem abaixo e diga se não é assustadora…
Muito se escreveu sobre vampiros após “Drácula” e muito se filmou sobre vampiros após “Nosferatu”. Indico “Nosferatu: Phantom der Nacht”, de 1979, dirigido por Werner Herzog. O enredo é um tanto fiel ao livro de Stoker. Ambos os filmes introduzem um novo elemento, a peste negra. Um dos escritos do filme de 1922 diz sobre um surto de peste na Transilvânia e no Mar Negro, locais em que pessoas estão morrendo com “estranhas feridas em seus pescoços”. Os ratos descendo do navio de Nosferatu aparecem nos dois filmes, mas os roedores têm maior destaque no filme de Herzog. Falarei da peste adiante.
Uma breve ponderação
Deixei esses parágrafos, que têm a pretensão de alguma síntese, para uma seção intermediária no texto, a fim de não afugentar de cara os leitores.
Vamos tentar, para efeito de compreensão do interesse científico sobre o mito do vampirismo, traçar uma continuidade desde o pensamento mítico até o pensamento racional, passando pelas manifestações artísticas. Volto a dizer, esse exercício é tentador e muitas vezes realizado de forma simplificada. Não o vejo como regra. Essas “coisas” são intricadas e muitas vezes temos apenas vislumbres.
O pensamento mítico tem, entre outros aspectos, componentes mágico e religioso. Com o desenvolvimento da linguagem, sentimentos e experiências puderam ser transmitidos para os descendentes. Dessa forma, mitos relacionados à origem da vida, à fertilidade, às doenças e à morte, dentre muitos, são encontrados em diversas culturas em todo o globo.
Os registros (sem os quais não seríamos capazes de saber da existência e do conteúdo de cada mito) permitiram, ao mesmo tempo, o aparecimento das primeiras manifestações do que hoje conhecemos como artes: pinturas rupestres, artesanato, enfeites a adornos, esculturas e, talvez a mais importante de todas, a escrita.
O relato escrito dos mitos contribuiu para melhor expressão sobre a relação que temos com as agruras (e por que não, também as alvíssaras) do nosso destino. Daí nasce a relação entre mito e poesia, que parece ter sido a maneira que nossos ancestrais escolheram para memorizar e transmitir o pensamento mítico através da linguagem (muitas vezes entoada com ajuda de instrumentos musicais).
Quando, por volta dos séculos VII e VI a.C., os gregos passaram a usar a razão para se relacionarem com a natureza, houve (ao que tudo indica) a primeira tentativa de conhecer metodicamente, prescindindo do pensamento mítico. Giovanni Reale e Dario Antiseri, no livro “História da Filosofia”, apresentam como marco do surgimento da filosofia o abandono de um pensamento mítico-poético e o início de um pensamento lógico e racional.
Da filosofia surgiu o que hoje conhecemos como ciência e seu método. De que conhecer a natureza (externa, e mesmo a nossa, interna) é um continuum, não tenho dúvidas. O início do ato de conhecer, o limite que transpomos entre desconhecido e conhecido, ou seja, a maravilha inicial (que Aristóteles viria a colocar como raiz da filosofia), tem muito de mítico-poético. Pode parecer contradição com o que escrevi acima, mas não é. O maravilhar-se não desaparece, continua a nos instigar, a nos empurrar… a estimular a imaginação.
“A imaginação é a louca da casa”, escreveu Santa Teresa d’Ávila, para quem a imaginação tinha vontade própria, era livre e incontrolável. Imaginar é também criar explicações para o desconhecido, aperfeiçoar as explicações através das formas artísticas e, com a intervenção da racionalidade, criar hipóteses “plausíveis”, tentando explicar o desconhecido de forma metódica, aditiva e compreensível ao intelecto. E acreditar na explicação racional… até quando ela for desacreditada por uma nova crença racional.
A incerteza nos ronda, isto é certo (ai!). Sempre haverá o desconhecido a estimular nossa imaginação, nossas faculdades artísticas e o pensamento racional. Por isso, não desprezaria o pensamento mítico-poético em detrimento do lógico-racional. Além disso, há beleza na investigação do quão intricados são todos esses aspectos. E isso justifica um texto sobre mito, arte e ciência.
Ciência
Restou, então, escrever sobre como a ciência abordou o vampirismo. Teria havido, na realidade e alguma vez, algum ser que pudesse minimamente se assemelhar às figuras sugadoras de sangue (e de força vital) encontradas nas mais diversas civilizações?
Ou, de outra forma: baseado no que conhecemos sobre os seres vivos e suas variações (inclusive os desvios da normalidade e as doenças), há algo que poderia ter despertado a imaginação dos nossos antepassados, levando-a à criação dessas figuras míticas?
Vou dividir a tentativa de abordagem científica do vampirismo em duas: uma, das condições em que os indivíduos têm alguma semelhança de aspectos físicos (raramente de hábitos) com os vampiros, e outra, das condições em que ingerir sangue é a principal característica (quase sempre sem semelhança física com os seres mitológicos).
Antes disso, menciono que comportamentos tribais, sociais e ritualísticos da ingestão de sangue ou de outros usos do sangue por diversas civilizações (inclusive descritos em textos religiosos) ficarão de fora deste texto, por se tratar de convenções sancionadas por uma tradição (concorde-se com ela ou não), as quais não se enquadrariam nos grupos acima, como ficará claro.
Semelhança física
Peste negra
A peste negra, infecção causada por bactéria chamada Yersinia pestis, foi flagelo para a humanidade por milhares de anos. Os relatos de ondas da doença no continente europeu durante a Idade Média e início da Idade Moderna são chocantes e inspiraram as mais diversas formas de arte, não sem antes gerarem um sem-número de explicações mítico-religiosas para a doença que dizimava, em algumas regiões, mais de um terço da população.
O medo do contágio levava as pessoas a evitarem os doentes, que muitas vezes não eram enterrados ou eram enterrados às pressas e com mínimo contato. Admite-se que a constatação do óbito nessas ocasiões deve ter sido precária e frequentemente errônea, permitindo que pessoas dadas como mortas voltassem a exibir sinais mais evidentes de vida (como respiração, movimentos de membros e, até, sentar-se e voltar a andar) após algum tempo.
A doença deixava os afetados extremamente magros, cheios de manchas e desfigurados. Alguns tinham retrações na face, deixando seus dentes saltados e com aspecto assustador. O cheiro putrefato da morte pela peste também deve ter contribuído para o cheiro que se atribui ao caixão dos vampiros.
Tudo isso pode ter estimulado a imaginação de uma população cercada pela morte. Encontrar uma explicação para as mortes, como a ação de um demônio ou um vampiro, a presença de uma maldição ou de bruxaria, e tantas outras sobrenaturais parece o melhor que aquelas pessoas apavoradas podiam fazer. Passamos por uma pandemia há pouco. Não é difícil entendermos o desespero, ainda mais numa época sem qualquer recurso de saúde e na presença de um germe muito mais letal.
Raiva
Doença viral de transmissão pela saliva de animais (raramente de humanos), através de mordida ou contato com mucosas, é muitas vezes esquecida em humanos, por ter se tornado bastante incomum, graças à disponibilidade de vacina e soro. É 100% letal quando o vírus atinge o sistema nervoso central.
Quando isso ocorre, a personalidade da vítima muda, tornando-se irracional e agressiva. Os contágios de humanos se davam pela mordida de cães e lobos infectados e que, justamente pela infecção, haviam se tornado mais agressivos. Vale dizer que raramente um humano afetado pela raiva vai adquirir o hábito de morder.
Espasmos (contraturas) da musculatura do pescoço e da face, em especial ao contato com água (o que leva animais e humanos a temerem a água, daí o outro nome da doença, “hidrofobia”), podem ter contribuído para o aspecto vampiresco dos pacientes acometidos pela raiva.
Porfiria
Porfiria é um conjunto de doenças genéticas que levam a diferentes defeitos na produção do heme (uma molécula que se junta a uma proteína, a globina, para formar a hemoglobina). Como o heme é produzido através de uma sequência de reações químicas controladas por enzimas, deficiências destas podem resultar no acúmulo de substâncias precursoras do heme. Esse acúmulo é responsável pelas manifestações clínicas da porfiria.
Como são várias enzimas, há quase 10 formas diferentes de porfiria. As formas que nos interessam são aquelas em que o depósito das substâncias ocorre também na pele, levando a diferentes graus de inflamação quando de exposição solar. A inflamação da pele pode chegar ao ponto de queimaduras e a recuperação pode deixar cicatrizes. No rosto, as marcas das cicatrizes podem alterar a feição dos pacientes.
Alguns pacientes com porfiria podem ter anemia, o que, à semelhança da inflamação da pele, pode ser mais ou menos grave. Até o século XIX, o máximo que se podia fazer por esses pacientes era protegê-los da luz solar, mantendo-os em casa durante o dia. Como muitas vezes as lesões de pele eram graves, chegavam a sangrar. Essa perda de sangue, aliada à anemia que a própria doença causa, levou médicos da época a receitar sangue (animal, não humano) para ser ingerido por seus pacientes. Alguém resolveu juntar essas peças e considerar que pessoas que sofriam de porfiria podem ter servido de inspiração para a figura do vampiro. Viram, leitores, como a imaginação pode ser a incontrolável, a louca da casa?
Pelagra
Outra doença comum nos séculos XVII a XIX foi a pelagra, causada pela deficiência de vitamina B3 (niacina). A niacina é um nutriente essencial encontrado em carnes, aves, peixes, leite, ovos, grãos integrais e vegetais verde-escuros. A deficiência de niacina pode ocorrer por uma série de razões, incluindo má alimentação e alcoolismo, duas condições muito frequentes nas populações pobres da época (de hoje também).
Dentre as manifestações da doença está a inflamação da pele exposta è luz solar. Com a cronificação da inflamação, a pele pode ficar fina e com aspecto de pergaminho. Outra manifestação da pelagra advém da falta de niacina para o cérebro, resultando em insônia, agitação e agressividade.
É muito difícil saber se alguma das quatro condições clínicas descritas acima contribuiu para o mito do vampirismo. Além disso, nenhuma dessas doenças leva à compulsão por sangue. Assim, se tiveram alguma participação em tempos remotos, seria mais uma vez o medo do desconhecido resultando em imaginação de irrealidades. E isto deve ter contribuído para acentuar o sofrimento daquelas pessoas. Não é demais comentar que, nos dias de hoje, não faz sentido associar pessoas que sofrem dessas doenças aos vampiros.
Compulsão por sangue
Por fim, temos os casos em que o aspecto físico não importa, mas sim o comportamento compulsivo por sangue. O comportamento de ingerir sangue seria o mais facilmente associado a algo que seria chamado de “vampirismo clínico”.
O compulsão por sangue, como o conhecemos do folclore e das artes, foi descrito raríssimas vezes em humanos e em praticamente todas elas havia um transtorno psiquiátrico diagnosticado na ocasião ou posteriormente, de forma que vampirismo clínico não veio a se tornar um diagnóstico médico. Nas raras vezes em que o comportamento ocorre, é parte de uma doença psiquiátrica.
E aí, existem ou não?
Volto a dizer: a imaginação é, muitas vezes, arredia à razão. Isto me parece uma grande vantagem.
A ciência falha, e muito mais do que gostaríamos. Nisso não há problema. O racionalismo não serve a tudo.
Por estar em paz com as limitações de cada uma dessas três criações humanas, as aprecio sem menosprezar qualquer que seja. Assim, digo que não há informações suficientes que nos permitam concluir que vampiros são ou jamais tenham sido reais. Certo?
Certo. Mas eles existem, certamente.
Curiosidade
E como alguém pode se tornar um vampiro? Já se perguntou isso? Claro que para essa pergunta desconsiderei a mordida de um vampiro para transformar alguém em outro vampiro. Isso é “corriqueiro”. Du Bulay conseguiu, após ampla pesquisa, informações sobre nove formas de alguém se transformar em vampiro, segundo a tradição (ou o desespero).1
1. Aqueles que não receberam os plenos e devidos ritos de enterro.
2. Aqueles que sofreram morte repentina e violenta (incluindo suicídio) ou que tinha sido vítima de atividades do tipo vingança e cujas mortes não foram vingadas.
3. Crianças natimortas.
4. Aqueles que morreram sob maldição, especialmente aqueles que cometeram perjúrio ao usar o nome de Deus em vão.
5. Aqueles que morreram sob banimento da igreja, especialmente os excomungados.
6. Aqueles que morreram sem batismo ou se tornaram apóstatas.
7. Homens de vida imoral ou má – particularmente aqueles que haviam lidado com as artes negras.
8. Aqueles que comeram carne de ovelha que havia sido morta por um lobo.
9. Aqueles sobre cujos cadáveres um gato ou outro animal havia passado.
Referência
- Du Bulay, J. (1982) The Greek vampire: a study of cyclic symbolism in marriage and death. Man. (N.S.) J. Roy. Anthrop. Instit. 17(2),219-238.
Sugestões de leitura
– Hampl JS, Hampl WS 3rd. Pellagra and the origin of a myth: evidence from European literature and folklore. J R Soc Med. 1997 Nov; 90(11):636-9. doi: 10.1177/014107689709001114.
– https://www.queensu.ca/gazette/stories/vampire-myths-originated-real-blood-disorder
– Prins H. Vampirism–legendary or clinical phenomenon? Med Sci Law. 1984 Oct;24(4):283-93. doi: 10.1177/002580248402400411.
4 Comentários
Marcelo Menezes
Renê,
Meu texto favorito até o momento! Parabéns! Excelentes informações, excelente pesquisa e uma didática cristalina que pouco se encontra.
Escrevi um email longo e enviei para quando puder ler.
Grande abraço!
Renê Oliveira
Muito obrigado, Marcelo.
Vou ler o e-mail e logo responderei. Quem sabe até tomamos um café para conversarmos mais sobre mito, arte e ciência?
Abraço.
Suzana Carvalho
Adorei, texto muito interessante e bem escrito!
Renê Oliveira
Obrigado, Suzana!