Ciências da vida,  Física

Voo do morcego e a ultrassonografia

Uma investigação sobre a relação entre o voo do morcego e a ultrassonografia nos dá uma ideia de como curiosidade e observação podem estabelecer correlações entre diferentes áreas do conhecimento e dos benefícios disto para a Ciência.

A biologia do morcego, com sua incrível habilidade de localização a partir do som, aliada à mecânica (ramo da física) das ondas sonoras resultaram na aplicação das ondas de ultrassom para diagnóstico médico (humano e de animais). Vamos contar um pouco dessa história.

Os morcegos

Os morcegos são mamíferos encontrados em diversos habitats, desde florestas tropicais até desertos e áreas urbanas. Apresentam membranas que se estendem, uma de cada lado, desde o pescoço até a mão, daí até a perna e a cauda, formando estrutura semelhantes a asas. Isso permite que os morcegos sejam os únicos mamíferos capazes de voar ativamente. As asas são flexíveis e adaptáveis, permitindo manobras ágeis e voos em várias direções.

Note, na figura abaixo, a origem da membrana a partir do pescoço, chegando ao polegar e os outros quatro dedos da mão. São dedos longuíssimos. A membrana une também o quinto dedo ao membro inferior e, passando por ele, à cauda.

Algumas espécies são frugívoras, se alimentando principalmente de frutas e néctar. Outras são insetívoras, consumindo uma ampla variedade de insetos. Além disso, existem morcegos que se alimentam de sangue, conhecidos como morcegos-vampiros. No entanto, a maioria dos morcegos não se alimenta de sangue e não representa risco para os humanos.

Além do controle de insetos, morcegos também são importantes para a polinização. Os morcegos polinizadores são atraídos por flores que produzem néctar, geralmente à noite, quando muitos outros animais polinizadores estão menos ativos. A língua longa e o formato da cabeça permitem que eles alcancem o néctar no fundo das flores, momento em que acabam se cobrindo com pólen, que é transferido de uma flor para outra à medida que eles se movem entre as plantas em busca de alimento.

Além disso, eles têm uma visão relativamente boa em condições de pouca luz, o que os ajuda a localizar as flores noturnas. Vamos saber um pouco mais sobre a visão dos morcegos.

A visão dos morcegos

Os morcegos não são cegos. De fato, eles têm visão bastante desenvolvida. Seus olhos, adaptados para a visão em condições de pouca luz, possuem células fotorreceptoras conhecidas como bastonetes, que lhes permitem enxergar em situações como o anoitecer ou em locais como cavernas escuras – semelhante à nossa visão periférica, como discutimos neste texto.

Por ser uma visão adaptada às condições de pouca luminosidade, tem menor definição do que a visão diurna de muitos outros animais, inclusive a nossa. Apesar disso, cada vez mais se reconhece a importância da visão para diversos aspectos da vida dos morcegos.

Se olhar bem nos olhos do morcego, verá que ele é menos assustador que parece, não é? https://commons.wikimedia.org/wiki/File:California_leaf-nosed_bat.jpg; the image is in the public domain.

Um grupo que investiga a acuidade visual de espécies brasileiras de morcegos frugívoros cita a importância da visão para algumas das tarefas dos morcegos em geral: encontrar abrigo, migração, captura de presas, evitar obstáculos e predadores, e reconhecimento visual. (1)

Ressalto que a visão é um auxílio para a orientação espacial dos morcegos, que se faz principalmente através de ecos, por isso chamada de ecolocalização.

O que é um eco?

Os sons que ouvimos (e também os que não ouvimos) são ondas. Essas ondas são chamadas de mecânicas, porque precisam de um meio para se propagar. Na nossa comunicação diária esse meio é o ar. As ondas sonoras não se propagam no vácuo, ao contrário das ondas eletromagnéticas (como a luz, por exemplo).

Ondas sonoras surgem após a vibração de um objeto (ou de órgãos dos seres vivos). Essa vibração transmite energia na forma da onda sonora, a qual se propaga e, se estivermos suficientemente próximo, poderemos ouvir o som correspondente. Veja, na figura abaixo, uma onda sonora e seu ciclo, que é um movimento completo, partindo de um ponto, fazendo toda a forma da onda e retornando ao mesmo ponto (nesse caso, escolhi iniciar o ciclo na crista do onda).

Eco é um fenômeno acústico (relativo ao som) que ocorre quando o som é refletido por uma superfície e retorna ao local de origem. Quando uma onda sonora encontra uma superfície sólida, como uma parede, montanha ou objeto, parte da energia sonora é refletida de volta ao ambiente. Esse som refletido é chamado de eco.

O eco é percebido quando há um intervalo de tempo entre a emissão do som original e o retorno do som refletido. As cordas vocais de nossa laringe (a parte mais profunda e invisível da garganta) vibram e produzem ondas sonoras que, após refletidas, retornam para nós (ecos) e são percebidas pelos nossos ouvidos.

Como se dá a orientação espacial dos morcegos durante o voo?

Os morcegos também emitem ondas sonoras através da laringe. Alguns desses sons são audíveis para nós, já outros são audíveis para os morcegos (e para alguns outros animais). Esses sons não audíveis para os humanos têm alta frequência e, quando refletidos – em objetos ou seres vivos – e recebidos de volta (ou seja, na forma de ecos) pelos ouvidos dos morcegos, são utilizados para orientação espacial. Como citado acima, esse fenômeno é chamado ecolocalização.

Com base nas características dos ecos, acredita-se que os morcegos sejam capazes de formar uma imagem mental do ambiente, incluindo localização, forma e movimentação dos objetos. A ecolocalização é tão eficaz que algumas espécies podem voar e caçar no escuro total, sem depender da visão. Isso lhes permite detectar presas em voo, evitar obstáculos e navegar com precisão em ambientes complexos, como florestas densas ou cavernas escuras. Veja abaixo a onda emitida (letra E) pela laringe, refletida (letra R) numa borboleta e percebida pelos ouvidos do morcego.

https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Chiroptera_echolocation.svg; under the Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported license.

A distância em que a ecolocalização dos morcegos funciona melhor pode variar dependendo da espécie (seu tamanho inclusive), do ambiente em que estão voando e da intensidade dos sons emitidos. Em geral, os morcegos são mais eficientes na detecção de objetos e na percepção de detalhes quando os ecos retornam em um intervalo de tempo relativamente curto, o que ocorre quando as ondas sonoras são refletidas por objetos distantes de algumas dezenas até pouco mais de uma centena de metros.

Espectro das ondas sonoras

Espectro sonoro é o conjunto de todas as ondas sonoras que podem ser produzidas por vibração de objetos ou fontes sonoras (seres vivos, instrumentos musicais etc.). Como sabemos, a onda sonora vibra. Uma de suas características é a frequência de vibração, ou de oscilação. O termo oscilação facilita o entendimento.

A frequência de uma onda sonora é uma propriedade que está relacionada à rapidez com que a onda oscila em um determinado intervalo de tempo. É medida em hertz (Hz), que representa o número de ciclos completos de oscilação que ocorrem em um segundo.

O espectro sonoro é amplo e varia desde sons de baixa até sons de alta frequência. O ouvido humano é capaz de detectar sons em uma faixa de frequência aproximada entre 20 e 20.000 Hz, conhecida como faixa audível. A partir da faixa audível pelo ouvido humano, os sons fora dela são chamados de infrassons (com frequência menor que 20 Hz) ou ultrassons (frequência maior que 20.000 Hz). Veja a diferença de velocidade da oscilação das ondas através do espectro sonoro – a velocidade aumenta da esquerda para a direita.

A frequência está diretamente relacionada ao tom ou altura do som que percebemos. Sons de frequências mais altas são percebidos como agudos, enquanto sons de frequências mais baixas são percebidos como graves. Por exemplo, um som de alta frequência, como o de um apito, terá uma frequência maior em comparação a um som de baixa frequência, como o de um tambor.

Os ultrassons

Até onde sabemos, os primeiros a notar que morcegos usam os ouvidos e não os olhos para guiarem seu voo foram Lazzaro Spallanzani (sim, aquele que, corretamente, foi contra a teoria da “geração espontânea”, como aprendemos no colégio) e Charles Jurine, no final do século XVIII. Quando cegaram os morcegos, eles não perdiam sua capacidade para orientação durante o voo, algo que ocorria quando enchiam seus ouvidos de cera, os deixando surdos.

A descoberta de que os morcegos utilizam a ecolocalização para se orientarem no espaço é atribuída ao cientista Donald Griffin. Em 1938 e 1941, Griffin publicou resultados de um estudo pioneiro em que apresentou evidências de que os morcegos emitiam sons de alta frequência e eram capazes de detectar e interpretar os ecos desses sons para se orientarem no ambiente. (2, 3)

Griffin realizou experimentos com morcegos em laboratório, observando como eles voavam e respondiam a obstáculos em ambientes escuros. Ele também utilizou equipamentos para registrar e analisar os sons emitidos pelos morcegos e os ecos resultantes. Seus experimentos demonstraram que os morcegos podiam modificar a frequência e o padrão dos sons emitidos, além de ajustar seu voo com base nos ecos recebidos.

Morcegos podem emitir sons na faixa de frequência entre 5.000 e 200.000 Hz. Assim, podemos ouvir alguns sons agudos (como o do canto dos pássaros) emitidos pelos morcegos. Quem já esteve em local habitado por morcegos no cair da noite certamente ouviu seus sons. E não ouviu os outros, com frequência acima de 20.000 Hz, os ultrassons, utilizados para ecolocalização.

Invenção do aparelho de ultrassonografia

A ultrassonografia, também conhecida como ultrassom ou ecografia, é uma técnica de imagem médica que utiliza ondas sonoras de alta frequência para visualizar órgãos internos do corpo humano.

Ian Donald, ginecologista escocês, dedicou-se ao uso dos ultrassons na obstetrícia. Ele começou a explorar a ideia de usar ultrassons para visualizar o feto no útero. Em 1958, Donald e seus colegas obtiveram a primeira imagem de ultrassonografia de um feto humano. Essa conquista abriu portas para o desenvolvimento da ultrassonografia obstétrica e se tornou ferramenta indispensável no acompanhamento pré-natal.

Nas décadas seguintes, a tecnologia da ultrassonografia continuou a evoluir. O advento dos transdutores eletrônicos de alta frequência e os avanços na computação permitiram melhorar a qualidade das imagens e a capacidade de visualizar diferentes tecidos e órgãos com maior precisão.

Aparelhos atuais

Em geral, os equipamentos de ultrassonografia médica operam em uma faixa de frequência que vai de 2 a 18 MHz (ou seja, de 2.000.000 a 18.000.000 de Hz). A parte do aparelho que toca a pele do paciente é chamada de transdutor, sendo responsável por emitir os ultrassons e ao mesmo tempo captar seus ecos.

Para examinar estruturas mais profundas no corpo, onde a penetração é necessária, frequências mais baixas, como 2 a 5 MHz, são usadas. Frequências mais baixas permitem que as ondas sonoras penetrem mais profundamente no corpo, mas com uma menor resolução de imagem.

Por outro lado, para examinar estruturas mais superficiais, como vasos sanguíneos ou órgãos próximos à superfície, frequências mais altas, de 7 a 18 MHz, são utilizadas. Frequências mais altas fornecem melhor resolução de imagem, mas têm penetração limitada.

Diferentes estruturas do nosso corpo têm diferentes capacidades de produzir ecos. Dessa forma, produzem imagens mais ou menos intensas, de forma que é possível individualizá-las com razoável precisão. Note, na imagem abaixo, que há regiões variando de preto até branco, com diferentes tons de cinza. Perceba também que os ossos (crânio, coluna, costelas, mãos e pernas) são impenetráveis aos ultrassons, produzindo, assim, muitos ecos e aparecendo como estruturas brancas no exame.

1 – transdutor do aparelho de ultrassonografia; 2 – útero; 3 – feto. Note o desenho das ondas ultrassônicas atingindo o feto e no detalhe superior a imagem que aparece na tela do aparelho de ultrassonografia. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Fetal_Ultrasound_numbers.png; under the Creative Commons Attribution-Share Alike 4.0 International license.

As imagens de ultrassonografia são bidimensionais. Apesar disso, hoje há softwares que conseguem conjugar diversas imagens bidimensionais para produzir imagens tridimensionais. É por isso que podemos ver o formato do rosto dos bebês durante o exame.

Não é possível sabermos como a imagem provocada pela recepção dos ultrassons “aparece” no cérebro dos morcegos. Apesar disso, por sua habilidade de voo e caça, penso que os aparelhos de ultrassonografia de que dispomos são bem menos sofisticados que os ouvidos e o cérebro dos mamíferos voadores.

Curiosidades

– Os dedos das mãos dos morcegos têm a mesma estrutura dos dedos humanos, com três falanges (figura abaixo):

Adaptado de https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Arm_skeleton_comparative_NF_0102.5-2.png; this work is in the public domain.

– Quando falamos em uma casa vazia, produzimos muitos ecos. Isso ocorre porque não há os objetos (móveis, cortinas, plantas etc.) que absorvem as ondas sonoras. Dessa forma, as ondas continuam se propagando e retornando a nós, os emissores, que ouvimos ecos de nossa própria voz.

– Golfinhos também usam a ecolocalização, com um detalhe de que as ondas sonoras produzidas em suas laringes são amplificadas e direcionadas (ou seja, concentradas em determinado ponto) por uma estutura que têm em suas testas, chamada “melão”.

– Meninos tolos (como eu fui uma vez) agitam varas de pescar na intenção de atraírem os morcegos. Sabemos que isso não passa de uma tolice.

Referências
  1. Antonio EA, de Sá FB, Santos KRP et al. 2020. Comparative retinal histomorphometry and visual acuity of three bat species of the genus Artibeus (Phyllostomidae: Stenodermatinae). Pesquisa Veterinária Brasileira 40(11):933-945.
  2. Pierce GW, Griffin DR. 1938. Experimental determination of supersonic notes emitted by bats. Journal of Mammalogy 19: 454–455.
  3. Griffin DR, Galambos R. 1941. The sensory basis of obstacle avoidance by flying bats. Journal of Experimental Zoology 86: 481–506.
  4. Se quiser ler a história da ecolocalização nas palavras do próprio Donald Griffin, aqui está: https://doi.org/10.1641/0006-3568(2001)051[0555:RTTMWE]2.0.CO;2

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