O que é imunidade?
O que é imunidade? Esta é uma das perguntas mais pesquisadas nos mecanismos de busca da internet. Vou adicionar outra: “O que é se defender?”, porque quem pergunta sobre imunidade busca informações sobre como o corpo se defende de infecções. No final das contas, é isso.
Palavras como “defesas”, “resistência” e “imunidade” fazem parte do cotidiano. Faça uma pausa e imagine todas as formas que nosso corpo tem de se defender – fisicamente, verbalmente e até mentalmente. Vivemos nos defendendo de muitas coisas e o tempo todo. Podemos reagir a uma agressão física, a uma agressão verbal, e até mesmo podemos treinar nossa mente para ser forte o suficiente e nos defender de ofensas, por exemplo.
O invisível é instigante
É possível ver e até sentir qualquer uma das formas de defesa anteriores. Um dos primeiros aspectos que intrigam as pessoas é o fato de que, ao contrário, as defesas da imunidade são invisíveis – ao menos a olho nu. Nem é possível também, na maioria das vezes, vermos de quem esse sistema nos defende.
Acreditem, em nossos corpos há uma interação constante com agentes invisíveis do ambiente. A interação entre nosso corpo e o meio já foi tema de outro texto. De todos os germes que podem interagir conosco e nos infectar, somente conseguimos ver os vermes (como as tênias e as lombrigas). Protozoários, fungos, bactérias e vírus só são visíveis ao microscópio.
Não podemos deixar de notar que nossa pele e nossas mucosas (revestimento da boca e de todas as outras estruturas do tubo digestivo, das vias aéreas etc.) são barreiras muito eficientes contra invasores. Eventualmente elas falham. É aí que nossa imunidade será colocada à prova.
Vamos às perguntas mais comuns com relação à imunidade.
Pergunta n. 1: O que é imunidade?
Para o propósito deste texto, imunidade é a capacidade que temos de responder a determinados tipos de agressão (infecções na maioria das vezes) através da ação do sistema imune. Esse sistema nos livra de diversos agentes estranhos ao nosso corpo. A palavra “estranhos” é de muita importância, pois não faz sentido, a princípio, nos defendermos de algo desejado – por exemplo, alimentos, bactérias que nos fazem bem, e até mesmo partes de nosso próprio corpo. Respostas (por definição, inadequadas) a cada uma dessas situações podem levar ao surgimento de doenças.
Estranhos, em especial, devem ser os germes que têm capacidade de causar doenças, as substâncias produzidas por microrganismos, os venenos e as toxinas. Assim, quando falarmos em imunidade nesses textos, estaremos nos referindo à capacidade de nos livrarmos desse tipo de agressores. Relembro o conceito de eventos estressores que escrevi nos textos passados. Cada uma das interações com esses agentes estranhos tem capacidade de desencadear a resposta do estresse agudo.
Características da imunidade
A primeira característica da imunidade é a vigilância das nossas interações com o meio. Temos células que servem de sentinelas e que fazem contato com tudo que vai entrar em nosso corpo. A segunda característica importante é a capacidade de diferenciar o que é desejado do indesejado, liberando a resposta imune contra o que é estranho e freando a resposta contra o que é próprio ou desejado. Como dito acima, devemos ter contato com inúmeras substâncias (inclusive remédios) e germes (nosso corpo tem bactérias que produzem vitaminas e outros compostos que favorecem nossa saúde) sem responder a eles.
Uma terceira característica da imunidade, o assunto desse texto, é a capacidade de montar uma resposta eficaz contra os invasores. Imagine nosso corpo como uma cidade dividida em bairros (nossos órgãos), cada um com suas funções, e protegida por muros e redomas (nossa pele e nossas mucosas). Como em toda cidade, há vias de acesso ao exterior. O sistema digestivo (entrada de alimentos) e o respiratório (entrada de oxigênio e saída de gás carbônico) são os mais evidentes nesse aspecto. A restrição de acesso ao que é estranho, nesses locais, é feito por células imunitárias.
Uma quarta característica da imunidade é sua capacidade de comunicação, de a partir de um ponto (por exemplo, um dos pulmões) recrutar rapidamente um “exército” para o combate. O sistema imune tem vários tipos de células com funções muito bem definidas para trabalharem em harmonia e eliminarem os invasores.
As quatro características acima, embora um tanto simplificadas, são suficientes para termos uma ideia do que é imunidade: uma vigilância contra agressões, capaz de diferenciar o que é desejável do que é estranho e em pouco tempo organizar um “exército” altamente especializado contra um invasor indesejado.
Um pouco sobre o sistema imune
O termo “sistema” em anatomia e fisiologia se refere a órgãos que atuam em conjunto para determinada função. Diversos órgãos e células trabalham em conjunto para compor o sistema imune, cuja finalidade mais evidente é a eliminação do que é estranho. A figura abaixo dá uma ideia dos componentes do sistema imune.
Glóbulos brancos
Todos já ouviram falar dos glóbulos brancos que temos em nosso sangue. Existem diversos tipos de glóbulos brancos, que viajam através da corrente sanguínea, até serem necessários para combater algo estranho em algum órgão. O que vemos no sangue é uma porção pequena de todos os glóbulos brancos que temos. A maior parte deles fica alojada em nossos órgãos, vigiando e prontos a darem um sinal de alerta ao menor risco.
O órgão invadido pelo agente estranho coloca uma bandeira vermelha em suas portas, dizendo aos glóbulos brancos que por ali passam através do sangue que eles precisam entrar e combater. Além disso, o órgão afetado e os próprios glóbulos brancos que foram para o combate enviam outros sinais, desta vez para o corpo todo, levando a uma resposta do sistema imune inteiro (e também de outros órgãos e sistemas, como vimos no texto sobre a resposta aguda do estresse).
A figura abaixo mostra os dois tipos de glóbulos brancos que aparecem em maior número no nosso sangue quando estamos saudáveis, os neutrófilos e os linfócitos. Neutrófilos são soldados da linha de frente, linfócitos são oficiais que organizam a campanha. Voltaremos a esse assunto em outros textos, quando falarmos dos tipos de resposta imune.
Vasos linfáticos e linfonodos
Os eventos mais importantes da resposta imune não ocorrem no sangue. Como vimos, é nos órgãos agredidos que a luta deve ocorrer. Nesses locais, há as células sentinelas do sistema imune e, assim que elas encontrarem o agressor, começarão a trabalhar na defesa. Algumas dessas células viajam para informar outras células do perigo. A viagem é feita através de um fluido corporal chamado de linfa. A linfa se origina nos órgãos e flui através dos vasos linfáticos até os quartéis do sistema imune. Esses quartéis estão espalhados por todo o corpo e são chamados de linfonodos.
Veja a figura abaixo, mostrando os vasos linfáticos e os linfonodos.
Muito se fala hoje em dia de “drenagem linfática”. Sim, os vasos linfáticos “drenados” são esses relacionados com a resposta imune. Na “drenagem linfática” o que se faz é comprimir esses pequenos vasos, empurrando a linfa para dentro dos linfonodos, depois para vasos linfáticos cada vez maiores e, enfim, para as veias.
Alguém já chamou você de “íngua” alguma vez? Íngua é um linfonodo que aumenta de tamanho e fica quente e doloroso. Isso ocorre porque o linfonodo está trabalhando mais do que nunca para organizar a melhor resposta imune contra uma infecção. Assim, ele parece estar inflamado. A situação mais comum de vermos as ínguas é nas infecções de garganta, em que os linfonodos do pescoço trabalham ativamente para conseguirmos eliminar as bactérias. Os linfonodos “inflamados” doem muito, o que é muito chato e incômodo, como as pessoas podem ser, às vezes.
Baço e medula óssea
O baço é outro órgão muito importante na imunidade. Sua função é semelhante à dos linfonodos. Por ser maior e receber grande quantidade de sangue, é uma estação de vigilância para agressores que conseguem atingir a corrente sanguínea.
A origem do sistema imune é a medula óssea, presente no interior dos ossos longos (dos membros) ou achatados (bacia e esterno, por exemplo). Na medula óssea há um grupo de células especiais, chamadas de precursoras (ou células-tronco). As células precursoras dão origem a praticamente todas as células do sangue, inclusive os glóbulos brancos. Por isso, muitas doenças que envolvem células do sistema imune podem ser diagnosticadas através de uma punção seguida de aspiração da medula óssea. Quando se faz um transplante de medula óssea, o que ocorre é uma tentativa de substituição das células doentes do sistema imune por células precursoras sadias.
Anticorpos
Anticorpos são proteínas produzidas por um tipo de linfócitos (linfócitos B) em resposta aos agressores. Os anticorpos são específicos para cada agressor, se ligam a ele e o “marcam” para ser destruído por células do sistema imune. Anticorpos são parte da resposta imune dita “adaptativa”. As vacinas induzem nosso sistema imune a produzir anticorpos específicos para determinado germe. Após vacinação ou uma infecção, há a possibilidade de termos uma “memória” na forma de anticorpos. Desta forma, é possível que não mais voltemos a ter a mesma infecção.
Todos esses componentes do sistema imune são importantes para a imunidade. Ausência ou falha de algum deles pode aumentar a chance de termos infecções recorrentes e de gravidade inesperada, resultando em imunodeficiência.
Pergunta n. 2: O que é imunodeficiência?
Ou, como muitas vezes me perguntam: o que quer dizer “imunidade baixa”? Imunodeficiência quer dizer sofrer de infecções mais vezes que o esperado e com maior gravidade.
Há um certo número de infecções até certo ponto “esperadas” ao longo de nossas vidas. Além disso, há germes que “normalmente” causam infecções nos humanos. É como se fosse “normal” termos algumas infecções, sem que necessariamente tenhamos um sistema imune deficiente. Imagine a quantidade quase infinita de germes a que seremos expostos durante a vida. Mesmo assim, estamos vivos. Ter uma ou outra infecção de vez em quando não é, de forma alguma, sinal de que nossas defesas são deficientes. Na verdade, para a grande maioria das pessoas elas são muito, muito eficazes.
O problema das crianças
Crianças que frequentam creches ou estão em idade escolar têm diversas infecções respiratórias (gripe, resfriado, faringite, amigdalite e otite) ou intestinais ao longo do ano. Para a maioria dessas crianças, é estimado que tenham até 10 infecções virais num ano, e que a soma de todos os dias em que estão doentes chegue a 60 num ano. Isso é esperado por diversos motivos, dentre eles: imaturidade do sistema imune (ainda teve poucos desafios em comparação com o do adulto) e permanência em local fechado, com muita proximidade e com grande número de crianças. Ter alergia respiratória (rinite e asma) também é fator de risco para um número maior de infecções respiratórias.
Estima-se que menos de 10% das crianças com infecções frequentes tenham imunodeficiência. Diversas outras condições ou doenças devem ser investigadas antes de atribuir o problema às defesas do organismo. Um bom pediatra tem consciência de tudo isso e pode orientar muito bem os pais ou cuidadores. A imagem abaixo nos preocupa, e muito. Apesar disso, quase sempre será temporária e logo esquecida.
Os adultos
Em adultos a suspeita é semelhante, com a ressalva de que o número de infecções pode ser menor, justamente por já terem tido mais contato com germes e não passarem tanto tempo em local aglomerado. Outra ressalva é que os adultos têm muitas outras condições que podem, por si, aumentar o risco de infecções: tabagismo, doença pulmonar obstrutiva crônica, diabetes mellitus, cirrose hepática, diagnóstico de cânceres e uso de medicações, entre muitos outros. É muito mais provável que a imunodeficiência esteja associada a essas condições do que seja um problema do sistema imune.
Noto que há um erro de expectativas – muitas vezes gostaríamos de nem ser infectados. Ter os sintomas de uma infecção não é um sinal de imunodeficiência, pelo contrário, é sinal de que o sistema imune está lá nos defendendo. Erro seria se não houvesse defesa e morrêssemos de infecções banais. Nossos agressores apresentam novas armas e estratégias, sempre. As infecções serão nossas companheiras, não há como fugir disso.
A cada contato com novo germe ou um antigo mutado (que sofreu mutação, como ocorre com muitos vírus respiratórios), o sistema imune precisa de um tempo para reconhecer o inimigo, organizar suas ações e vencer a batalha. O período de reconhecimento e organização é o pior para nós. É quando temos febre, “moleza”, falta de apetite etc.. Parece que fomos “atropelados por um caminhão”. É também o momento em que procuramos ajuda médica. Se for uma infecção viral, devemos repousar e esperar, pois a batalha está só começando e logo o mal-estar vai passar. Se for bacteriana, o sistema imune vai receber um reforço importante, que são os antibióticos.
Antes de pensar em imunodeficiência, melhor pensar em cuidados que evitam a transmissão de germes, dos vírus em especial. Lavar as mãos, evitar compartilhar talheres e copos e evitar aglomerações (principalmente na época do ano em que estamos agora, fria e seca) são ações que podem ajudar. Não vamos levantar suspeitas injustas sobre nosso sistema de defesa. Ele trabalha muito, incansavelmente, sem você perceber.
Quando suspeitar de imunodeficiência?
Primeiro, devemos saber que as doenças do próprio sistema imune que levam a imunodeficiência são raras, ocorrendo em 1 em cada 1.200 a 2.000 pessoas. Já foram descritas mais de 100 doenças do sistema imune que causam imunodeficiência, todas elas raras.
Há, sim, situações diante das quais os médicos devem iniciar uma investigação sobre imunodeficiência em crianças. Estas são algumas: ter duas ou mais pneumonias bacterianas ou quatro ou mais otites bacterianas em um ano; infecções virais da boca e da faringe (estomatites) ou monilíase (infecção pelo fungo Candida, conhecido por sapinho) por mais de dois meses seguidos; diarreia crônica (mais do que 4 semanas seguidas); abscessos repetidos na pele ou em órgãos internos; necessidade de internações e antibioticoterapia intravenosa para tratar infecções; retardo de crescimento em decorrência de infecções que duram mais que o esperado; infecções por germes que não deveriam causar infecções em humanos, dentre eles alguns fungos, bactérias e protozoários.
Sempre será necessária a avaliação médica para julgar se não há outros motivos para cada uma das situações citadas acima – síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA), alergias respiratórias e alimentares, diabetes não tratado, efeito colateral de medicações, alterações anatômicas das vias aéreas etc. A lista é grande. Os casos em que o diagnóstico é confirmado, na ausência de outras condições clínicas, são chamados de imunodeficiência primária, porque o problema tem origem no sistema imune.
E nos adultos?
É mais difícil haver suspeita de imunodeficiência primária em adultos, pois seria improvável (pelo que já sabemos sobre as crianças) passarem os quase 20 anos até a idade adulta sem infecções graves e repetidas.
Mesmo assim, há retardos no diagnóstico e algumas regras podem auxiliar na suspeita de imunodeficiência em adultos: duas ou mais infecções de ouvido (otite média) ao ano; duas ou mais sinusites (na ausência de alergia – cuidado para não confundir com rinite alérgica!) ao ano; uma pneumonia por ano, por dois anos consecutivos; diarreia crônica com perda de peso; abscessos recorrentes, cutâneos ou de órgãos internos; e infecções por diversos tipos de vírus, de forma recorrente. Não esquecer das causas que podem contribuir para imunodeficiência nos adultos, como relatado acima – nesses casos, chamamos de imunodeficiência secundária. Tudo isso deve ser avaliado durante um atendimento médico.
Uma condição que merece mais atenção, porque interfere em diferentes células e funções do sistema imune, é o uso de medicações. Em especial, os tratamentos de cânceres e doenças autoimunes podem causar imunodeficiência, em diferentes graus e por períodos diferentes. O uso de glicocorticoides (corticoides ou, como se diz, “cortisona”) é muito frequente nessas condições e notadamente aumenta a chance de infecções. Isso seria um dos exemplos de imunodeficiência secundária e esse efeito de diminuir a imunidade em uma pessoa sem doença primária do sistema imune é chamado imunossupressão.
Como investigar?
Quando a suspeita de imunodeficiência primária for razoável, há diversos exames a se fazer. O primeiro deles, não é difícil de imaginar, é o hemograma. Trata-se de um exame que todos já fizemos. As contagens total de glóbulos brancos e de cada um de seus tipos dão informações valiosas. Um segundo exame, também de fácil realização, é a avaliação da quantidade de anticorpos que estamos produzindo, através da dosagem no sangue. Radiografias de tórax e seios da face também podem ser exames iniciais de fácil realização. Outros exames podem ser necessários, mas devem ser solicitados pelos especialistas e auxiliariam em casos de imunodeficiências ainda mais raras.
Para os casos de imunodeficiência decorrente de tratamentos para outras doenças, raramente é necessária investigação, pois já se conhece o motivo (as medicações) do funcionamento deficiente do sistema imune e os exames de rotina para o seguimento delas incluem o hemograma e, muitas vezes, a dosagem de imunoglobulinas (anticorpos) no sangue.
Nos próximos textos abordaremos o que sentem as pessoas com imunodeficiência, o que podemos fazer para ajudar nosso sistema imune a funcionar bem e se é possível aumentar a imunidade com alimentos e remédios.
Algum assunto deste texto você gostaria de saber em maior profundidade? Deixe nos comentários.
Referências bibliográficas
- https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/img/documentos/doc_imunodeficiencia_primaria.pdf (texto da Sociedade Brasileira de Pediatria, com 10 sinais de alerta para imunodeficiência primária)
- https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/2015/02/Texto-Qd_Pensar-em-IDP-PortalSBP-Persio2014.pdf (Texto da mesma sociedade, sobre quando suspeitar de um caso de imunodeficiência)
4 Comentários
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Marcelo B Menezes
Renê, como sempre muito clara e adequada a explicação. E dosar a vastidão do que você conhece sobre o assunto para escrever algo com essas características demanda um talento enorme!
Imagino o desafio de fazer textos consistentes numa época em que “se aprende” com vídeos de 10 segundos.
Parabéns mais uma vez, são textos excepcionais!
Grande abraço!
Renê Oliveira
Obrigado, Marcelo.
Suas leituras são sempre valorosas. Tenho me esforçado cada vez mais.
Por saber da importância que a escrita e a leitura têm para você, fico muito feliz com seus comentários.
Abraço.
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