Ciências da vida

Estresse: sucumbir ou perseverar?

No texto anterior revisamos as alterações que ocorrem em nosso corpo durante o estresse agudo, muitas vezes chamadas de resposta aguda do estresse. Foi um enfoque na resposta puramente fisiológica do estresse. Neste texto, levaremos em conta aspectos mentais (ou psicológicos – cognitivos, comportamentais, emocionais) do estresse. Esses aspectos tornam-se mais importantes à medida em que o estresse se prolonga. Portanto, muito do que você lerá será referente ao estresse crônico.

Quando abordamos o estresse de origem psicológica, a susceptibilidade individual a diferentes estressores torna-se mais importante do que, por exemplo, a resposta que damos a estressores físicos ou biológicos. Susceptibilidades diferentes implicam em diferentes respostas individuais aos vários estressores, e essas diferenças podem ser herdadas ou, até certo ponto, adquiridas (interações sociais e fatores ambientais).

Assim, tentaremos entender como a percepção do efeito negativo que as situações estressoras nos trazem pode resultar em alterações psíquicas e corporais, em especial no estresse crônico. Espero que você consiga, ao final, ter sua opinião sobre a questão: o estresse é um vilão ou um mensageiro?

Definições da área de saúde

O modo como o estresse é assunto cotidiano se aproxima bastante das definições de entidades médicas. Não há definição única. Veremos duas:

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS): “O estresse pode ser definido como um estado de preocupação ou tensão mental causado por uma situação difícil. O estresse é uma resposta humana natural que nos leva a enfrentar desafios e ameaças em nossas vidas. Todo mundo experimenta estresse em algum grau. A maneira como respondemos ao estresse, no entanto, faz uma grande diferença para o nosso bem-estar geral”. 1

Outra, no site da American Psychological Association: “O estresse é uma reação normal às pressões do dia a dia, mas pode se tornar insalubre quando perturba o funcionamento do dia a dia. O estresse envolve mudanças que afetam quase todos os sistemas do corpo, influenciando a maneira como as pessoas se sentem e se comportam. Ao causar alterações mente-corpo, o estresse contribui diretamente para distúrbios e doenças psicológicas e fisiológicas e afeta a saúde mental e física, reduzindo a qualidade de vida”. 2

Das definições acima nota-se que o aspecto mental ou psicológico é o mais importante e que expressões como “estado de preocupação” e “funcionamento do dia a dia” nos remetem a algo que ocorre em longo período, ou seja, cronicamente. Sempre que ouvimos as palavras estresse e estressado (a), nos vem à mente algo como na figura:

Imagem de Justin Martin por Pixabay
É possível medir o estresse?

Uma das maiores dificuldades na avaliação do estresse (e também de outros aspectos emocionais e comportamentais) é a falta de um meio padronizado de medi-lo. É um problema de quantificação. Como se atribui quantidade a um sentimento ou uma emoção?

Você já deve ter feito exames de sangue diversas vezes. Esses exames dão um valor numérico ou uma resposta do tipo presente/reagente/positivo ou ausente/não reagente/negativo. Os valores numéricos serão julgados normais ou alterados de acordo com valores pré-determinados. O mesmo ocorre para considerarmos alterados ou não, no segundo exemplo.

Assim, temos quantidades para definir se há alterações no funcionamento do nosso corpo e se é possível atribuí-las ou não a uma doença. Por exemplo, na avaliação de anemia, quantificamos a hemoglobina no sangue; o mesmo para avaliação de diabete, quando quantificamos a glicose (açúcar) no sangue. Ou seja, usamos quantificações também para dar diagnósticos. Como seria isso com relação à avaliação do estresse?

Imagens de OpenClipart-Vectors por Pixabay e Imagem de Joshua_Willson por Pixabay

Há dezenas de tentativas de quantificar o estresse. Elas se dividem, principalmente, em abordagens na forma de observação clínica, entrevistas estruturadas, questionários aplicados por entrevistador ou autoaplicáveis. Não há simplesmente um exame ou um teste.

Tentativas de atribuir um número ao estresse

Muitas dessas tentativas atribuem qualificação verbal às perguntas, na forma de respostas como: nunca, um pouco, algum, um tanto ou muito. Por exemplo, sobre uma questão como esta: “Eu falei com alguém sobre como eu estava me sentindo”. A resposta deve ser uma das cinco anteriores. Números são atribuídos às respostas, em ordem crescente ou decrescente, por exemplo, de 1 a 5, sendo 1 para “nunca” e 5 para “muito”.

Atribuir números à presença ou ausência de determinado evento ou característica ou sentimento também é uma forma que possibilita alguma quantificação do estresse. A intenção em todos esses casos é ter um número. Ao transformarmos respostas em números, conseguimos uma quantificação e, mais importante, isso nos possibilita usar estatística para medir diferenças.

Nenhuma dessas avaliações abrange sozinha todos os aspectos do estresse, havendo ferramentas para avaliar, por exemplo, ansiedade, memória, eventos estressores a que a pessoa teve contato, estratégias de enfrentamento dos estressores, sintomas associados ao estresse etc. São ferramentas que exigem longo tempo de execução, por isso, são de pouca aplicação diária, ficando restritas muitas vezes a situações de pesquisa. Se você for a um atendimento psicológico ou médico, é improvável que os profissionais usem algum desses instrumentos na sua avaliação.

Características de um evento estressor

Um evento, para ter potencial estressor, deve ser novo e imprevisível, deve ameaçar nossa integridade física e/ou emocional, e deve desencadear uma sensação de que somos incapazes de controlá-lo.

As características do evento estressor influenciam diretamente no processamento mental que fazemos da situação. Simplificando, trata-se de como ficaremos após a relação entre os eventos estressores (fatores ambientais ou eventos internos) e nosso processamento mental do evento estressor. Pode ser útil relembrar o conceito de homeostase, abordado no primeiro texto.

Devemos, agora, nos aprofundar na questão das diferenças individuais.

Diferenças no enfrentamento dos eventos estressores

O enfrentamento de um evento estressor é complexo e cheio de matizes. Nem sempre é algo como “8 ou 80”. Nem sempre se resolve tudo ou se resolve nada da situação. Duas palavras são utilizadas como referência: resiliência e vulnerabilidade. Há variados graus de resiliência e vulnerabilidade. Fatores genéticos e de desenvolvimento (da infância à vida adulta) e os contextos cultural e socioeconômicos modulam o enfrentamento.

A estrutura mental que avalia a potencial ameaça de uma situação é moldada pelos fatores culturais e socioeconômicos. Por exemplo, mudanças de trabalho ou escola, falar em público, conflitos interpessoais e frequentar lugares lotados, são situações que podem ser estressoras para alguns e aprazíveis para outros.

A vida como um todo, em suas relações e convivências, pode ser fonte de eventos estressores, sejam atuais, sejam passados. Ainda, a vida, às vezes por escolhas próprias, outras vezes não, pode se tornar fonte de estresse crônico.

O peso da exposição a eventos estressores traumáticos ou crônicos é consideravelmente maior quando ocorre na infância. Esses eventos têm potencial de moldar a resposta a eventos estressores por toda a vida, aumentando a chance de vulnerabilidade e consequências ruins do estresse (como veremos adiante).

No sentido oposto, numa contrabalança, há os fatores protetores contra eventos estressores: suporte familiar; atividade física; traços de personalidade e comportamento (como “encaro” a vida e atitudes diante da vida). Traços de personalidade envolvem, entre outros aspectos, filtros mentais (a forma como vemos o mundo) e mudanças ativas para encontrar o equilíbrio (homeostase). Estimular a busca por fatores protetores é uma das possibilidades de ajuda para quem vive situações de estresse crônico.

Eventos traumáticos e estressores crônicos

Eventos traumáticos são aqueles particularmente graves e intensos, que claramente colocam a vida ou a sanidade mental em risco – violência, perda de alguém, abuso, desastres naturais e bullying são exemplos. Já os estressores crônicos são aqueles presentes por longos períodos e têm potencial para desencadear o estresse crônico – viver em uma vizinhança insegura, viver uma relação conflituosa, desemprego, cuidar de alguém dependente.

Estes dois tipos de eventos levam a alterações da estrutura cerebral, em especial aquelas relacionadas ao afeto e à memória, deixando o cérebro mais e mais reativo a novas situações estressoras. Por si, isso já poderia ser ruim, mas torna-se ainda pior se a pessoa passa a reagir de forma desproporcionalmente intensa a eventos que representam pouca ou nenhuma ameaça. É como o gato escaldado ter medo de água fria, mesmo quando o balde está vazio.

A repetição de respostas (estresse agudo, como vimos no texto anterior) para lidar com eventos estressores crônicos leva a outras mudanças corporais. Essas mudanças decorrem da ativação do sistema nervoso autônomo e de hormônios, como vimos, e também de respostas dadas por células do sistema imune.

As mesmas respostas passam a ocorrer quando há percepção de ameaça por eventos de baixo potencial danoso. Estas tornam-se excessivas e repetitivas e têm potencial de contribuir para o surgimento de doenças. Uso a palavra contribuir porque dificilmente o estresse “sozinho” causaria doença. Ele é tido como um fator de risco, ou seja, um dos eventos que, associado a outros e a fatores genéticos, pode resultar no adoecimento.

Exemplos de respostas excessivas

Respostas excessivas podem ser: antecipação (preocupação excessiva com uma possibilidade futura, muitas vezes com chance remota de ocorrer), hiper-reatividade a um evento (pessoas que explodem por qualquer coisa, às vezes após um mal entendido) e não se acostumar com um evento que se repete (mesmo um evento de menor importância; a pessoa não “resolve” o efeito do evento e continua suscetível a ele). Imagine as descargas de adrenalina e a liberação de cortisol que ocorrem nas antecipações e na hiper-reatividade, e que essas descargas ocorrem muitas vezes em curto período. É como viver em constante alerta. Um exemplo disso é quem vive em locais perigosos, onde roubos, assaltos e assassinatos são frequentes.

Gostaria de dar exemplo de uma situação em que o evento estressor terminou, mas seu reflexo e sua amplificação continuam em nossa mente (e nossa alma). É o caso de remoer eventos passados. Remoer tem o mesmo sentido de ruminar, aquilo que alguns animais fazem. Esses animais mastigam e engolem, mas após algum tempo o alimento volta à boca para ser mastigado novamente. Quem nunca disse “ainda não engoli aquela situação”? É exatamente isso que você está fazendo, ruminando ou remoendo, pois o problema voltou à sua “boca” e você ainda não o “digeriu”.

Também somos ruminantes

Remoer uma situação é manter cronicamente as alterações corporais do estresse. Muitas vezes é chegar também a novas conclusões sobre o que a situação estressora representa, quase sempre tornando-a cada vez maior e difícil de “resolver”.

Há situações na vida das quais é quase impossível nos recuperarmos completamente, assim como há situações imperdoáveis. Apesar disso, um outro fator protetor é a capacidade de perdoar.  

Sim, a girafa é um ruminante. Imagem de Christel SAGNIEZ por Pixabay

Sempre que possível (e o possível leva em conta o tamanho do dano que sofremos e a sinceridade do arrependimento do agressor), é melhor “passarmos” por cima de uma situação e perdoar. E quando digo “melhor”, nem me refiro a ser melhor para quem será perdoado, mas para nós mesmos. Depois de ler esse texto até aqui, você já consegue entender o porquê.

Não “trabalhar” em nossa mente (e nossa alma?) a capacidade de perdoar é abrirmos mão de um poderoso fator protetor contra o mal que nos foi infligido, permitindo que ele persista na forma de uma adaptação errada e um estresse crônico.

Dois novos termos

Neste ponto, um outro conceito deve ser introduzido. À semelhança de “stress”, palavra da língua inglesa, o termo “distress” também tem essa origem. Há algumas traduções possíveis para a língua portuguesa: angústia, desconforto, sofrimento, entre outras.

É o termo que se usa para os efeitos psicológicos do estresse crônico. É comum englobar também os efeitos do estresse no corpo. Os efeitos no corpo, em conjunto, são chamados de “somatização”. “Soma” tem origem grega e significa “corpo”. Assim, somatização é o mecanismo psicológico pelo qual a angústia (o desconforto, o sofrimento) é expressa no corpo, na forma de sintomas. Imagine que o sofrimento é tamanho que não pode ser contido pelo cérebro e acaba extravasando para o corpo.

Os sintomas da somatização incluem: dor muscular, dor nas juntas, dor de cabeça, dor no peito, alterações do sono, sensação de falta de ar, dor no estômago, fadiga etc. Uma ressalva deve ser feita – para que se suspeite de somatização, nenhuma alteração orgânica que explique os sintomas é encontrada durante a avaliação médica e os sintomas não são explicados por nenhuma doença.

Podemos incluir os sintomas somáticos numa classe de sintomas medicamente inexplicáveis. Estima-se que os atendimentos de pessoas com sintomas inexplicáveis nas Unidades Básicas de Saúde correspondam a 1/3 de todas as consultas.

Doenças possivelmente associadas ao estresse

Além de resultar em sintomas inexplicáveis, sem uma doença evidente na consulta ou após a realização de exames, o estresse crônico pode, ao menos em parte, contribuir para o surgimento de doenças. As mais estudadas são as doenças cardiovasculares, alguns tipos de câncer, alguns transtornos mentais e doenças neurodegenerativas, o envelhecimento precoce e as doenças autoimunes.

Foge à intenção deste texto entrar em detalhes sobre nomes de doenças. Também não objetivo fazer um texto catastrofista, que deixe o leitor com a impressão de que as situações que lhe causam estresse no dia a dia vão fazer com que desenvolva alguma doença grave e tenha sua vida abreviada.

Muitas (ou quase todas) pesquisas que avaliam a participação do estresse no surgimento de doenças o fazem a partir de associações entre uma “exposição” (em nosso caso a situações estressoras) e o diagnóstico de determinada doença (infarto do miocárdio, câncer, doença autoimune etc.). Esses estudos partem de um grupo de indivíduos com a doença a ser estudada e outro grupo sem a doença. Então, os pesquisadores avaliam o passado de todos os indivíduos, muitas vezes através de entrevistas, em busca da exposição a algum fator (no nosso caso, eventos estressores e suas frequência e intensidade) para a doença em questão. Caso a exposição seja mais frequente no grupo dos doentes, o fator passa a ser considerado de risco para aquela doença.

Exemplo de um estudo: bullying

Estudo com metodologia parecida foi feito com adolescentes, comparando um grupo que havia sofrido bullying e outro que não. O grupo que sofreu bullying grave tinha sintomas semelhantes, em intensidade e frequência, aos de pacientes que sofrem de um transtorno chamado de estresse pós-traumático (por abuso sexual, abuso físico, perda de familiar etc.). O bullying grave foi definido pela exposição à situação vexatória e abusiva no mínimo uma vez por semana por pelo menos 6 meses seguidos. O bullying grave pode resultar em doenças psiquiátricas na vida adulta, em dificuldades persistentes de relacionamento social e até mesmo em maiores taxas de suicídio.3

Imagem de Hoàng Tiến Việt por Pixabay

Estudos desse tipo dão “pistas” de que um fator está implicado no surgimento de uma doença, mas não permitem responder “como” isso ocorre. Para isso são necessários outros tipos de estudo, muitas vezes antes de a doença surgir. E, como já vimos, isso é um tanto difícil (não impossível) com relação ao estresse.

Palavras finais

O estresse do cuidador (de idosos, principalmente, mas não só) é um assunto a que deveremos dar atenção, em especial porque a população mundial está envelhecendo e isto demandará cada vez mais cuidados para pessoas com diferentes graus de limitação. Seja um familiar, seja um profissional, a função de cuidador traz sobrecarga física e emocional intensas, que podem desencadear diferentes graus de estresse crônico.

Se você quiser saber mais sobre o perdão e seus efeitos, a Literatura é uma fonte excelente. Diversas obras têm o perdão como tema. Aqui vão algumas sugestões, para gostos diversos: “As crônicas de Nárnia” (C.S. Lewis), “O morro dos ventos uivantes” (Emily Brontë), “Os miseráveis” (Victor Hugo) e “O auto da compadecida” (Ariano Suassuna). Se quiser o perdão numa situação extrema, leia “Crime e castigo”, de Fiódor Dostoiévski.

Respondendo à pergunta se o estresse é vilão ou mensageiro, penso que é um mensageiro bastante fiel, que nos avisa o tempo todo de que estamos num equilíbrio muito precário com o ambiente (e algumas vezes com nossa mente). Negligenciar seus avisos nos tem feito muito mal.

Sucumbir ou perseverar? Perseverar, sempre. Mesmo que às vezes seja impossível não sucumbir (e isso ocorre), que não ocorra por leviandade nem por desespero. E para aqueles eventos estressores do dia a dia (em especial os não traumáticos), escolha perseverar e perdoar. Isso reduzirá a chance de sucumbir e adoecer. Parecem frases de livros de autoajuda, admito. Às vezes é do que precisamos.

Nos próximos textos abordarei o sistema imune e, então, os efeitos do estresse sobre a imunidade.

Referências
  1. https://www.who.int/news-room/questions-and-answers/item/stress
  2. https://www.apa.org/topics/stress
  3. https://capmh.biomedcentral.com/articles/10.1186/s13034-019-0304-1
  4. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0091302218300219 (Embora seja técnico e de linguagem um tanto difícil para quem não é habituado, este é um excelente texto sobre o estresse e seus efeitos no corpo e na mente)

(Nota: este é o segundo de uma série de textos sobre o estresse e seus efeitos em nosso corpo, com destaque posterior aos efeitos no sistema imune. Ao final, apresentarei o primeiro projeto de pesquisa que desenvolvi, cujo tema era o efeito do estresse nas funções do macrófago, uma célula do sistema imune.)

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