Estresse: amigo ou inimigo?
Estresse é uma palavra que quebrou a barreira das conversas de cientistas e se tornou assunto do nosso cotidiano. Por isso mesmo, tem sido usada com diversos significados, por vezes causando confusão: na forma de uma situação que enfrentamos (“passei um estresse”), no modo como o sentimos (“não aguento mais de tanto estresse”) e ainda, como um estado mental (“sou muito estressado”).
Introdução
Para aclarar a confusão, vamos aos seus usos: como uma (1) resposta padrão e involuntária (reação a um evento estressor) que nosso corpo dá a (2) situações (eventos estressores) do nosso dia a dia e a (3) percepção do efeito negativo que essas situações trazem ao não conseguimos lidar com elas. Para efeito deste texto, o uso do termo estresse significará a reação biológica a uma ameaça, deixando para as situações que a desencadeiam o termo “estressores”. A percepção do estresse será abordada em outro texto, por ser um campo de estudos mais novo.
Estímulos de natureza diversa, como ambientais (criminalidade, contas a pagar, trânsito etc.) e internos (doenças, desentendimento conjugal, perda de pessoas próximas etc.), podem desencadear o estresse. É fácil notar no nosso dia a dia que eventos estressores semelhantes desencadeiam reações muito diversas em diferentes pessoas. Às vezes, nem desencadeiam, ou seja, o que é estressor para um pode não ser para outro.
Veremos que o estresse é essencial para a vida e ajuda a resolver a situação estressora na maioria das vezes. Quem nunca passou um “sufoco”? Todos já passamos por muitos sufocos e nos demos bem na maioria das vezes. Acontece que em alguns casos o “sufoco” persiste e essa persistência mantém nosso corpo dando a resposta (estresse) até um ponto onde ficamos exaustos. Essa exaustão é a situação em que dizemos “não aguento mais esse estresse” e percebemos que “somos estressados”.
Afinal, seria o estresse um vilão ou apenas um mensageiro?
Hans Selye foi o primeiro a usar “estresse”
É provável que a palavra tenha tido origem no latim – strictus é uma palavra latina que significa “apertado”. Se levarmos em conta a sensação de algo apertado, que nos pressiona, veremos que o termo é bastante adequado para o estresse, em especial frente a estressores que persistem e, por isso, nos angustiam. É muito comum pessoas angustiadas terem a sensação de um “aperto no peito”.
“Estresse” foi usado pela primeira vez nas ciências biológicas em 1950 pelo austro-húngaro Hans Selye. Foi tomado emprestado da física e nesta área refere-se à força interna de um corpo que resiste a uma força externa a ele aplicada. Selye pretendeu com isso dar nome a uma resposta corporal contrária a uma demanda externa (neste caso, mesmo às demandas internas, como um exercício físico intenso ou infecções, por exemplo).
Trabalhos pioneiros sobre a interação corpo-ambiente
Teremos que voltar um pouco mais no tempo, se quisermos entender melhor a interação entre corpo e ambiente. Em Ciência, voltar no tempo e buscar as fontes primeiras das ideias e descobertas é um caminho que dá muitos e bons frutos. Duvido que você se arrependerá se adquirir esse hábito.
O século XIX trouxe grandes avanços no estudo da fisiologia humana. Um nome merece destaque, pela relevância de seus trabalhos. Trata-se do francês Claude Bernard, sobre quem poderíamos fazer diversos textos, tão grande sua contribuição para a medicina experimental. Foi ele que chamou a atenção para o fato de termos um “meio interno” em que acontece tudo de que depende nossa vida; um meio capaz de regular a si próprio, onde células e tecidos desempenham suas funções em harmonia. Além disso, acreditava que o meio interno estava em constante relação com o meio externo e que essa relação deveria ser a de um equilíbrio dinâmico.
Outro nome, já no início do século XX, é o do americano Walter Cannon, que cunhou o termo “homeostase”. Homeostase quer dizer a tendência de manter uma estabilidade interna de forma dinâmica, isto é, através de pequenas variações com o intuito de limitar o efeito de forças externas. Podemos entender homeostase como uma “força” interna, uma resposta de todo o nosso corpo (todos os órgãos e sistemas ao mesmo tempo), que promove ajustes internos frequentes de modo a manter a estabilidade em resposta ao ambiente. Cannon foi o primeiro a descrever a resposta aguda do estresse (que, como escrito acima, ainda não tinha esse nome)
Resposta aguda aos eventos estressores
As reações que ocorrem de forma aguda em nosso organismo (estresse) em resposta aos eventos estressores são essenciais para nossa sobrevivência. Elas são um meio de nos adaptarmos a mudanças ambientais e, em alguns casos, mudanças internas. Ou seja, visam a manter a homeostasia. Por exemplo: quando estamos muito tempo sem nos alimentarmos e nosso nível sanguíneo de glicose (açúcar) começa a cair; quando estamos em ambiente muito frio e precisamos manter nossa temperatura; quando sentimos dor; quando sofremos um trauma e perdemos quantidade significativa de sangue (acima de 10% de nossa quantidade total de sangue).
O estresse agudo nos deixa mais alertas, mais ágeis e até com maior força muscular. É uma resposta do tipo “lute ou fuja”, como descrita por Cannon, em 1915, e visa a manter a integridade física e preservar a vida. Você já deve ter ouvido várias vezes a palavra “adrenalina” associada a situações de grande emoção (medo, por exemplo) ou esforço físico. Como veremos, adrenalina é uma das substâncias liberadas no estresse agudo.
Essa resposta é tão importante que está presente em todos os animais. De fato, alguma reação a eventos estressores é notada em todos os seres vivos, até em bactérias.
Resposta crônica aos eventos estressores
O estresse passa a ser notadamente prejudicial quando persistente, situação chamada de estresse crônico. Quem primeiro notou a existência de manifestações comuns (um padrão) a indivíduos sob situações estressoras crônicas foi Hans Selye, na década de 1920. Ele percebeu que diversos pacientes hospitalizados tinham sintomas em comum, a despeito de terem doenças diferentes, e os considerou sintomas associados ao fato de “estarem doentes”. Dentre esses sintomas estavam: cansaço, falta de interesse pelas atividades diárias, perda de apetite e vontade de passar o dia em repouso.
Você certamente conhece alguém que, não estando doente, se queixa dos mesmos sintomas acima. Se é que você mesmo já não experimentou essas sensações desagradáveis em algum momento. Voltaremos a esse ponto.
Experimentos de Hans Selye
Selye fez experimentos com ratos colocados sob situação estressora crônica (imobilidade e baixa temperatura por 4-18 horas; para um rato, esse tempo é considerado crônico). Sacrificou-os e examinou seus órgãos internos, encontrando: grande aumento das adrenais, atrofia de órgãos linfoides (isto é, do sistema imune – timo, baço e linfonodos) e úlceras gástricas sangrantes.
Selye dedicou sua carreira ao estudo do estresse. Acrescentou duas fases à resposta aguda do estresse, descrevendo a síndrome de adaptação geral, em 1936. A adaptação geral que ocorre em nosso corpo consiste de: uma reação de alarme (defesa), seguida por um estágio de resistência (os efeitos da reação aguda desaparecem; há manutenção da integridade) e, enfim, uma exaustão (falência da resistência). A exaustão ocorre porque a adaptabilidade dos organismos vivos é finita. Selye já suspeitava de que fatores genéticos eram importantes para maior ou menor adaptabilidade.
Em 1951 Selye escreveu: “Qualquer coisa que cause estresse põe em risco a vida, a menos que seja enfrentada por respostas adaptativas adequadas; inversamente, qualquer coisa que coloque em risco a vida causa estresse e respostas adaptativas. Adaptabilidade e resistência ao estresse são pré-requisitos fundamentais para a vida e todos os órgãos e funções vitais participam deles.”1
Note que ele se refere a nos adaptarmos e resistirmos, algo especialmente importante para situações de estresse crônico e para a forma como percebemos o estresse. Em outras palavras, é a forma como lidamos com as situações estressoras. Quando não “lidamos bem” ou não “resolvemos” a situação estressora, passamos para o estresse crônico; deixamos de apresentar os sinais da descarga de adrenalina e, esgotados, passamos a ter outros sinais como cansaço, falta de atenção, desânimo, sonolência excessiva e alterações do apetite. O estresse crônico pode levar ao que também muito se ouve falar hoje, a síndrome do esgotamento (burnout, em inglês).
Estresse – liberação de adrenalina
A resposta aguda do estresse é complexa e envolve diversos órgãos e sistemas. Ela tem início no encéfalo (cérebro), independente de se decorre de algo consciente (por exemplo, medo de um assalto) ou inconsciente (como em um processo infeccioso). Conscientes ou não do estressor, uma parte de nosso encéfalo, chamada hipotálamo, vai comandar as ações: enviando mensagens através do nosso sistema nervoso autônomo e produzindo hormônios.
O sistema nervoso autônomo controla diversas funções do nosso corpo, independente de nossa vontade. Temperatura, batimento cardíaco, movimentos de estômago e intestinos, frequência respiratória em repouso estão entre as funções que o sistema nervoso autônomo controla. Ele também age na reação aguda do estresse. Através de nervos (do sistema nervoso autônomo), o hipotálamo envia informações até as adrenais e estas imediatamente liberam adrenalina. A foto abaixo mostra a glândula e sua localização em cima do rim (ad – junto de; renal). Temos duas adrenais, uma junto de cada rim.
Por ser algo independente de nossa vontade, somos incapazes de conter a reação aguda causada pela descarga de adrenalina (batedeira no peito, suor excessivo, tremores etc.). As alterações que mais notamos no estresse agudo decorrem da ação do sistema nervoso autônomo sobre adrenal. A adrenalina é liberada para o sangue, sendo transportada em poucos segundos para todo o corpo. Essa rapidez é essencial para uma reação de lute ou fuja.
Esta outra figura mostra a divisão da adrenal em medular (seu “miolo”) e cortical (seu envoltório, algo como uma casca, mas espessa). A adrenalina é produzida e liberada na região medular. Na cortical são produzidos diversos hormônios esteroides, dentre eles o cortisol, um hormônio com inúmeras funções e também liberado no estresse agudo.
Estresse – liberação de cortisol
O cortisol é um glicocorticoide, um hormônio que tem como função regular o metabolismo de açúcares (glico-). No estresse agudo há liberação, pelo hipotálamo, de um hormônio (CRH, hormônio liberador de corticotrofina) que vai atuar em uma outra estrutura do cérebro, muito próxima, chamada hipófise. A hipófise é, então, estimulada a produzir um outro hormônio, chamado ACTH (hormônio adrenocorticotrófico), que será liberado no sangue e vai agir na região cortical das adrenais. É esse hormônio, ACTH, que estimula as adrenais a produzir e liberar cortisol. A figura abaixo mostra o cérebro seccionado ao meio e visto por dentro. Note onde ficam hipotálamo e hipófise e como são próximos.
Se a liberação de adrenalina é estimulada via sistema nervoso, ocorrendo em segundos, a liberação de cortisol, por depender da secreção de hormônios que serão levados pelo sangue até adrenal, ocorre depois de minutos. A adrenalina causa aumento da frequência cardíaca, alguma elevação da pressão arterial, sudorese (aumento da transpiração), maior ou menor grau de tremores e, como um todo, um estado de alerta (ficamos “ligados no 220”). O cortisol é responsável por promover reações químicas em diversos órgãos (fígado, músculos) levando à produção e liberação no sangue de glicose em quantidade suficiente para termos energia para lutar ou fugir. A figura abaixo mostra os dois modos como a informação sai do hipotálamo e chega às adrenais. Um impulso nervoso é muito mais rápido que o transporte de hormônios através da circulação do sangue (ACTH).
Mudanças corporais pelo estresse crônico
Passado o estresse agudo, os níveis de adrenalina diminuem em minutos, enquanto os de cortisol retornam aos valores habituais após algumas horas. Quando o evento estressor é persistente, pode ocorrer o estresse crônico, situação na qual a produção e secreção de cortisol ficam constantemente elevadas. Há variações de outros hormônios também, mas vamos nos ater somente ao cortisol, por ser o mais estudado.
Níveis cronicamente elevados de cortisol podem resultar em hipertensão arterial sistêmica, perda de massa muscular e aumento de tecido adiposo (gordura), prejuízo de memória e variados graus de imunossupressão (menor funcionamento de nossas defesas contra infecção). Além disso, podem ocorrer todos os sintomas que Hans Selye encontrou em seus pacientes na década de 1920 e que motivaram as pesquisas sobre o estresse: cansaço, falta de interesse pelas atividades diárias, sonolência excessiva e alteração do apetite.
O estresse crônico traz prejuízos ao corpo e à mente, por isso, é suspeito de contribuir para o surgimento de diversas doenças. Há uma sensação difusa na sociedade de que o estresse crônico tem aumentado. É um aparente contrassenso, se levarmos em conta que avanços em conhecimento e tecnologia deveriam resultar em bem-estar geral. A humanidade alcançou melhoras na qualidade de vida impensáveis há algumas décadas. Vivemos mais, mas não estamos certos de que vivemos melhor. Mas essa percepção é assunto para a segunda parte deste texto.
Curiosidades
Por ora, ficaremos com algumas curiosidades:
– Cortisol tem efeito anti-inflamatório. Você já deve ter ouvido que “fulano toma cortisona”. Cortisona é um metabólito (ou seja, uma forma de degradação) do cortisol, que é também sintetizada em laboratório e foi por muito tempo receitada para pacientes com doenças inflamatórias, como a artrite reumatoide. Quando ingerida, a cortisona sofre uma reação química no fígado que a transforma em cortisol. Do fígado ele vai para o sangue e “viaja” até as juntas, onde pode agir reduzindo a inflamação e aliviando a dor.
– Cortisol e outros hormônios (progesterona, por exemplo) são produzidos na adrenal a partir do colesterol. O colesterol é essencial para nosso organismo, sem ele não viveríamos.
– Internação prolongada em Unidade de Terapia Intensiva é uma situação de estresse crônico. Nesses pacientes, podem surgir úlceras no tubo digestivo, muito parecidas com as que Selye descreveu nos ratos de seus experimentos.
1. SELYE H. The general-adaptation-syndrome. Annu Rev Med. 1951;2:327-42.
(Nota: este é o primeiro de uma série de textos sobre o estresse e seus efeitos em nosso corpo, com destaque posterior aos efeitos no sistema imune. Ao final, apresentarei o primeiro projeto de pesquisa que desenvolvi, cujo tema era o efeito do estresse nas funções do macrófago, uma célula do sistema imune.)
3 Comentários
Maria Isabel Fernandes Lopes
Excelente! Muito interessante!!!
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