Ciências da vida

Luz dos vaga-lumes ilumina a Ciência

Os vaga-lumes, ou pirilampos (gosto muito deste nome, acho sonoro e divertido), foram uma das experiências mais instigantes da minha infância. Em noites de verão, ir até o quintal e ver um ponto de luz verde-amarelada piscando na escuridão era um convite à curiosidade.

E ninguém que eu conhecia sabia explicar por que raios um bicho emitia luz assim. Aposto que você também se perguntou e garanto que não fomos os únicos. Por milênios essa pergunta ficou sem resposta, até que há pouco mais de um século começou a ser respondida. E a resposta fez bem para muitos ramos da Ciência. Veremos como.

Os vaga-lumes

Vaga-lumes são insetos cujas características os classificam como besouros (Ordem Coleoptera). Eles passam a maior parte de seu tempo de vida sob a terra, na forma de larvas. É comum os vaga-lumes viverem de 1 a 2 anos na forma larval. Depois, metamorfoseiam-se para a forma de pupa, ficando assim por mais alguns meses e, finalmente, assumem a forma adulta, que é a que normalmente vemos voando em noites escuras em matas, florestas, brejos e mesmo em campos abertos. Os adultos morrem em até 4 semanas.

Vemos os vaga-lumes somente nos meses mais quentes do ano, na primavera e no verão. Como todo inseto, têm cabeça, tórax (de onde saem seis patas e, para alguns, dois pares de asas) e abdome. O abdome é segmentado e seus últimos três segmentos têm a capacidade de emitir luz e captar nossa atenção. Não apenas a nossa.

Imagem de Paul Diaconu por Pixabay

Há um motivo para os vaga-lumes brilharem? Sim. O principal motivo é o macho atrair a atenção da fêmea para o acasalamento. Outro motivo é assustar e espantar predadores, embora isto nem sempre funcione a acabe atraindo a atenção de predadores maiores, como sapos.

O Brasil é o país com maior número e diversidade de insetos luminosos. Há mais de 500 espécies de vaga-lumes por aqui, distribuídas em três principais Famílias, sendo Lampyridae a mais numerosa. A diversidade é tanta, que há vaga-lumes com brilho contínuo, em flashes, em pulsos e até numa combinação destes últimos. Os que brilhavam em pulsos eram os mais comuns em minha casa.

Bioluminescência

E como eles produzem luz? Há milênios a humanidade se assusta, se espanta ou se interessa por animais capazes de produzir luz. Sobre isso há relatos em quase todas as culturas, mas uma observação metódica através do uso da razão (ou seja, filosófico-científica) parece ter tido início com Aristóteles, filósofo grego que viveu de 384 a 322 a.C..

Vale saber que Aristóteles foi o primeiro a usar uma abordagem parecida com o que hoje chamamos de método científico e seu interesse pelas ciências da natureza tomou grande parte de sua obra filosófica. Sua importância para a Ciência é tamanha, que seu nome e suas ideias aparecerão inúmeras vezes nesse blog.

Voltando aos pirilampos, eles, bem como outros animais luzentes, não passaram despercebidos ao grego. Ele foi também o primeiro a notar que a luz emitida por esses animais é fria, diferente da luz solar ou do fogo. Quem já pegou um vaga-lume sabe que eles não queimam nossa pele.

No final do século XIX, essa emissão de luz fria foi chamada “luminescência” e nas décadas seguintes surgiu o termo “bioluminescência” para indicar a luz fria produzida por organismos vivos.

Outros animais bioluminescentes

A maioria dos animais bioluminescentes vive na água, próximo da superfície ou nas profundezas oceânicas, onde usam a emissão de luz com o mesmo propósito dos terrestres e também para predarem. Há animais bioluminescentes ao longo de grande parte da escala evolutiva, desde bactérias e fungos até minhocas e peixes.

Alguns protozoários luminescentes devem ter sido motivo de sustos durante as Grandes Navegações, levando ao que os navegadores chamavam “mar em chamas”, como relatou Cristóvão Colombo. Veja que bela imagem de um protozoário marinho (dinoflagelado) produtor de luz azul.

De cor azul também é a emissão da luz por águas-vivas. Já cogumelos (fungos) produzem um espetáculo verde.

Luciferina, a molécula que carrega a luz

É atribuída a Raphaël Dubois a descoberta da molécula luminescente, no final do século XIX. De fato, Dubois descobriu que em extratos aquosos obtidos dos corpos de animais luminescentes havia ao menos dois “fatores” que reagiam para produzir luz.

Como ele chegou a essa conclusão? Aqui precisamos fazer nova pausa. Dubois realizou um experimento. Quer dizer que ele fez um teste, sob situações controladas, a fim de observar um fenômeno. É algo assim que cientistas fazem.

Vamos ao experimento. Aquecendo uma quantidade do extrato até a temperatura de ebulição (água fervendo), notou que o material logo perdia definitivamente a luminosidade, ou seja, a bioluminescência desaparecia e não retornava, mesmo com o retorno do extrato aquoso à temperatura ambiente. Se o extrato não aquecido (ainda emitindo luz) fosse acrescido ao previamente aquecido e já resfriado, este último voltava a emitir luz.

O passo seguinte é interpretar o que foi encontrado no experimento. Dubois imaginou que havia no extrato um componente resistente ao calor, mantendo sua capacidade de produzir luz, enquanto outro, não. A esse “fator” que mantinha a capacidade de emitir luz chamou “portador” da luz, usando a palavra latina para isso: luciferine. Sim, o nome remete a Lúcifer, que também era portador da Luz antes de sua queda. A figura abaixo mostra a fórmula estrutural da luciferina.

https://pubchem.ncbi.nlm.nih.gov/compound/92934

Ao segundo fator deu nome de “luciferase”.

Luciferase, o catalisador

Acredito que você já tenha ouvido falar de catalisadores, principalmente relacionados aos automóveis, usados para reduzir a emissão de gases tóxicos. O termo se refere a uma substância que acelera uma reação química. No caso dos automóveis, os catalisadores aceleram reações químicas que transformam gases mais tóxicos em menos ou não tóxicos. Uma característica do catalisador é que ele não é consumido na reação. Os catalisadores automotivos são substâncias químicas inorgânicas.

 O termo foi utilizado pela primeira vez em 1836, antes dos experimentos de Dubois. Logo, ele sabia que havia algo nos extratos dos seus experimentos que catalisava (acelerava) a emissão de luz. Além disso, substâncias catalisadoras já tinham sido descobertas nos seres vivos (catalisadores biológicos) e estas receberam, desde então, nomes terminados em “-ase”. Um detalhe é que esses catalisadores biológicos são sensíveis à temperatura, ou seja, perdem seu efeito definitivamente se aquecidos. Assim, Dubois imaginou que estivesse diante de um desses catalisadores biológicos, que atuaria sobre seu “fator” luciferina, e chamou-o de luciferase.

À época de Dubois, os catalisadores biológicos já eram chamados de “enzimas”, termo que comumente ouvimos no dia a dia. Se você quiser saber sobre as enzimas em maior detalhe, comente ao final deste texto. O estudo das enzimas é fascinante, pois elas participam de quase tudo o que acontece em nosso corpo. Quem sabe não vira assunto de um futuro artigo?

Dubois trabalhava com extratos de seres vivos, sem individualizar as moléculas. Por muitos séculos, cientistas utilizaram diversos meios indiretos de encontrar ou comprovar um “fator” responsável pelo fenômeno (físico, químico ou biológico) que observavam. Observar fenômenos sem conseguir “vê-los” diretamente (em nível celular ou molecular) sempre desafiou a Ciência.

Certo, mas e a luz, como surge?

Abaixo está uma figura mostrando, de forma simplificada, a reação em que a luciferina do vaga-lume sofre efeito catalítico da luciferase e é transformada em oxiluciferina. A luciferase, por ser uma proteína (as enzimas são um tipo de proteínas), é muito grande e não seria possível representá-la numa figura sem complicar o entendimento. Por isso, vemos somente seu nome.

Sob efeito da luciferase, a luciferina reage com oxigênio e ATP (molécula que armazena energia nos seres vivos), resultando na formação de oxiluciferina e gás carbônico. Parte da energia gasta na reação fica armazenada na molécula de oxiluciferina, assumindo uma forma “excitada”. Trata-se de uma excitação eletrônica (de elétron) que dura pouco, havendo liberação dessa energia na forma de luz e retorno à condição fundamental da molécula. Isso quer dizer que os vaga-lumes utilizam energia para emitir luz. E, como citado anteriormente, o fazem de um jeito muito eficiente, sem produção de calor.

Cada ser vivo luminescente tem uma luciferina diferente. As diferenças estão na estrutura molecular e resultam na emissão de luz de cor variada (como você pôde ver acima – amarelo, verde e azul).

Finalmente, luciferina isolada!

Somente em 1957 a luciferina foi obtida na forma cristalizada (semelhante ao açúcar que usamos em casa), a partir do abdome de milhares de vaga-lumes. Alguns anos mais tarde, a molécula foi sintetizada, aumentando assim a possibilidade de novos experimentos sem a necessidade de dar fim aos pirilampos.

Faltava ainda a obtenção da luciferase. Por ser uma molécula grande (uma proteína, como já sabemos) e complexa, sua síntese não era possível fora de um organismo vivo (num tubo de ensaio, por exemplo). Na década de 80, o gene da luciferase foi clonado (quer dizer, foi lido pela primeira vez).

Gene é um pedaço de DNA (nosso material genético, tão falado até mesmo em programas de televisão). Cada gene traz a informação para a produção de uma proteína. Em nosso corpo há em torno de 30 mil genes. Esse também é um assunto fascinante.

Saber exatamente como era esse pedaço de DNA permitiu que o gene da luciferase fosse isolado e inserido em bactérias. Como todos sabem, bactérias são seres vivos, que produzem suas próprias proteínas. O que os cientistas fazem nesse caso é usar a bactéria para produzir a proteína que eles desejam. Tendo recebido o gene (DNA do vaga-lume) que traz a informação para a produção da luciferase, essas bactérias passaram a produzir uma grande quantidade da enzima.

Muitos medicamentos que usamos hoje em dia são produzidos assim: dentro de bactérias ou fungos que produzem a proteína de que necessitamos e a secretam (colocam para fora de si). Essas bactérias e fungos ficam em recipientes com líquidos. Daí, é só recolher a proteína do líquido do recipiente. Pronto! Não faltava mais nada. Era possível ter um sistema biológico de produção de luz para experimentos de laboratório. E essa luz dos vaga-lumes trouxe muitos avanços.

Aplicações da luz dos vaga-lumes

Um organismo vivo e saudável consegue produzir energia. Se você se alimenta bem e respira um ar com boa quantidade de oxigênio, as células do seu corpo vão produzir energia a partir dos alimentos e do oxigênio. Isso é uma medida de vitalidade, ou seja, de que você como um todo e seus órgãos estão bem.

Toxicidade de medicamentos

Você se lembra de que na reação em que a luciferina emite luz é necessária energia, na forma de ATP? Assim, uma primeira aplicação da luz dos vaga-lumes é mostrar se uma célula ou um órgão estão com boa vitalidade. Se estiverem, estarão produzindo energia (ATP) e haverá muita transformação de luciferina em oxiluciferina, com geração de luz. Quanto mais luz gerada, mais energia disponível.

Imagine que um novo medicamento está sendo produzido. Grande parte das vezes, os testes iniciais ocorrem in vitro (isto é, com células retiradas do corpo e colocadas em tubos de ensaio). Se o medicamento for tóxico para a célula, ela produzirá menos energia, logo, na presença de luciferina e luciferase produzirá pouca luz. Quanto mais tóxico o medicamento, menos luz haverá no tubo de ensaio. Assim, a toxicidade pode ser avaliada sem a necessidade de ingerirmos a medicação. Além disso, se pode ter uma ideia de que dose será ou não tóxica quando for testada em animais ou humanos.

Avaliação de contaminação

Agora imagine situações em que seja necessário saber se há germes em determinada superfície (no solo, em uma sala de um hospital etc.), em alimentos (controle de qualidade e higiene) ou em água. Nosso olho é incapaz de dar essa resposta. Também não é possível usar um microscópio para isso. Luciferina e luciferase podem ser usadas para essa detecção de germes nessas amostras, pois onde eles estiverem, haverá bioluminescência.

Escolha do melhor tratamento para de tumores

Seria ótimo se soubéssemos o melhor medicamento para o tratamento de um câncer. Se, dentre os vários medicamentos disponíveis, houvesse um meio de dizer qual (ou quais) tem maior chance de sucesso, o medicamento escolhido seria a primeira tentativa de tratamento, aumentando a chance de sobrevivência. Há diversos estudos sobre o tema, com resultados muito promissores.

Um pedaço do tumor é extraído do paciente e colocado em diversos tubos (ou placas) de ensaio, com nutrientes e oxigênio em quantidades adequadas. Assim, o tumor terá condições de crescer. Em cada tubo é colocada a dupla luciferina-luciferase e os tubos logo começarão a apresentar luminescência. Em seguida, são colocados os medicamentos específicos em cada tubo. Se um medicamento funcionar, as células do tumor deixarão de crescer e se multiplicar, em grande parte porque estão produzindo menos energia (ATP). E onde há pouco ATP, a luciferina não emite luz. Ao longo de alguns dias de observação, é possível saber em qual tubo houve menor multiplicação das células do tumor. O melhor tratamento estará no tubo onde a emissão de luz for menos intensa.

A curiosidade pode dar bons frutos

Quem diria que a luz desses insetos sairia de grutas e matas, passando por registros de civilizações antigas até chegar aos textos de filosofia? E para ter chegado à filosofia é porque causou maravilha e espanto, instigando cientistas a colher os frutos que só a curiosidade bem orientada pode trazer. A luz dos vaga-lumes ilumina a Ciência.

Para saber mais:

https://www.fireflyatlas.org (Site muito bonito e informativo, de uma sociedade de estudo e proteção dos vaga-lumes; em inglês).

https://fireflyexperience.org/ (Um site repleto de fotos e vídeos sobre vaga-lumes, tudo em alta definição).

https://doi.org/10.1590/S1676-06032010000200013 (Artigo com estudo brasileiro sobre as espécies de vaga-lumes em algumas cidades do estado de São Paulo.

https://rvq-sub.sbq.org.br/index.php/rvq/article/view/934 (Um excelente texto em português sobre vários aspectos da vida dos vaga-lumes e da importância desses animais)

https://agencia.fapesp.br/vagalumes-iluminam-cavernas-e-cupinzeiros-na-amazonia-para-atrair-presas/23496/ (Reportagem sobre um estudo nacional que encontrou vaga-lumes em cupinzeiros e grutas).

6 Comentários

  • Fabiola Oliveira

    Não sei se foi seu professor, o Edmur.
    Lembro-me dele dando essa aula. Depois da descoberta da emissão de luz com o fenômeno da mudança de camadas nas órbitas dos elétrons, foi uma das minhas primeiras paixões na tríade físico-química-biologia.
    Uma viagem no tempo!
    Hoje vemos um número menor de vaga-lumes, embora na roça ainda apareçam alguns.
    O que mais gostei, entretanto, foi relembrar o plural!!! VAGA-LUMES

    • Renê Oliveira

      Não o conheço, mas já tinha ouvido falar, há muito tempo.
      Do que encontrei, em sites de vigilância, os vaga-lumes não estão ameaçados de extinção, mas a impressão de quem os estuda na natureza é de diminuição importante do número. Acreditam que tem a ver com a “poluição” luminosa.

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